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domingo, 12 de maio de 2013

Queda Livre


“Como se você estivesse caindo e caindo, em queda livre, sem ninguém pra te oferecer uma mão. Caindo em direção à escuridão, e não tem como parar, porque não há barreiras, não há paredes, não há nada além de tristeza e desespero, solidão e medo. Tudo é intangível, feito de escuridão. Você quer parar, mas não consegue porque não tem como. E quando você percebe isso, que não há uma saída, uma forma de parar a vertigem, a queda livre, você atinge o chão. Dói e machuca e te deixa desnorteado, mas eventualmente você entende onde está, apesar de não poder ver nada ao redor. Você atinge o fundo do poço. Você tenta escalar de volta, mas não há como. Você chora e chora e chora mais um pouco. Você quer sair dali, você quer o que antes tinha; um pouco de luz, um pouco de sol, um pouco de paz. Um pouco de contato, um pouco de felicidade. É vazio dentro de você. Tão vazio dentro quanto fora e isso machuca, parece ser uma mão enlaçando seu coração e o apertando, constringindo-o dentro do seu peito. Dói. Uma agonia sem fim que te faz deitar na cama, se encolher e chorar até soluçar, até não conseguir respirar, até gritar porque aquilo ali não é vida. Não deveria ser assim, nunca, jamais. Te machuca fisicamente com a força do golpe que é mental. Te deixa nu e vulnerável. Te deixa forte. Lugares austeros constroem pessoas austeras, que se esqueceram de sonhar, que pararam, que foram obrigadas a parar. Que não sabem amar porque nunca conheceram amor. Uma hora você desiste. Uma hora já não dá mais pra fingir que a escuridão vai dar lugar a uma parede, a uma escada que você vai poder escalar até encontrar um raio de sol. Não. Não dá. Não há nada ao seu redor e você percebe isso. Não há porque lutar, tentar, fingir, se manter forte. É um momento muito solitário. Você não tem ninguém com quem contar e se tivesse, não contaria do mesmo jeito. Você já fez sua cabeça. Uma boa metáfora, não? É assim que você se sente antes de tentar se matar. É assim que você se sente quando tem depressão. Essa doença que te faz parar de ver a luz quando é ela o que te mais te rodeia. Que te faz se trancar num quarto escuro e dormir por horas a fio porque a vida lá fora é horrível e assustadora e te faz mal, como se fosse um bicho asqueroso rastejando pela sua pele, te dando arrepios que você não pode conter.”

“Você ainda se sente assim?”

“O que mais além disso eu tenho para sentir?”

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Em Ponto



“Eu tenho câncer,” ela disse.

Ele não ofereceu nada. Nenhum sinal de simpatia, empatia, pesar. Seu terapeuta a encarou com um pedido mudo para que continuasse.

Ela respirou fundo e fechou os olhos por um momento. Era difícil conversar sobre isso, sobre seus pontos fracos, sobre o que a assustava à noite e a impedia de sair. O que a fazia entrar em um estado de inércia—dias, semanas, meses—e chorar na hora de dormir. Na hora de viver.

O ambiente em si era confortável. Nada muito profissional, além da estante cheia de livros sobre doenças mentais. Na primeira vez em que estivera ali, ela vira um dos títulos que ela mais gostava—A Menina que Roubava Livros—e dali em diante, passou a fazer de um hábito seu, checar todos os títulos que não fossem relacionados à saúde.

“Minha família,” finalmente, depois de um bom tempo, ela respondeu. “As pessoas.”

Ela esperou, mas já sabia que o silêncio continuaria presente. Era sempre assim, o bastardo sádico. Ele a fazia soltar uma informação que ela definitivamente não queria e com isso não a deixava ir. Com um anzol enferrujado, porém afiado, ele a pescava.  Ela se contorcia e tentava fugir, mas de nada bastava.

Ela já esperava que ele não oferecesse resposta até que ela terminasse. Nem meias palavras, nem consolações. Em parte, gostava disso. Não queria nenhum conforto no momento.

“Vai me destruindo por dentro, minhas vísceras, até que a única coisa que resta é a casca. É isso o que eu sou. Uma carcaça.”

Dessa vez ele franziu as sobrancelhas, mergulhado em pensamentos, e acenou. Remexendo-se devagar, no silêncio daquela manhã, ele correu os olhos pelo cômodo.

“O que mais te corrói por dentro?”

“Corrói? Hum...” ela comprimiu os lábios pensativa.

O teto dele era bastante bonito, meio vitoriano. Um candelabro no centro da sala. De súbito, pensou, “deve ser uma grana isso aqui.” E era. Mas sua família podia arcar com as despesas. Sua família, na verdade, podia pagar tudo, exceto coisas simples como bem-estar. Paz, felicidade. Coisas simples. Ela sorriu amargamente.

“Injustiça.”

“Qual tipo?”

“Algumas pessoas merecem mais do que elas têm... algumas merecem menos. Mas quem decide isso? Talvez seja só meu ponto de vista, até porque eu não conheço todo o mundo pra dizer essas coisas—e também não vou entrar na parte política, ou de gente que deveria estar na cadeia—mas tem gente que sofre, e sofre, e nada de bom vem. Por quê? Por que tem gente que é feliz enquanto há gente que é infeliz desde uma pequena idade? Por que tem gente que é feliz enquanto há pessoas morrendo de fome?” Ela respirou fundo, “não estou dizendo que essas pessoas deveriam ser infelizes por haver gente infeliz. Não. Ninguém nunca entende o que eu quero dizer. O que eu quero dizer é, por que existem coisas tão distintas no mundo? Gente tão feliz enquanto há gente que nem uma refeição completa durante o dia tem.”

“Você se considera uma pessoa que merece mais do que tem?”

O “sim!” em sua boca estava a ponto de sair, mas ela se refreou. “Não,” disse, desviando o olhar. “Mas também não mereço o que eu recebo. Eu venho tentando tanto, mas nada de bom sai disso.”

“Por que você acha isso?”

Sua respiração soou chiada no silêncio do cômodo. Ela quis gritar, levantar da poltrona confortável de couro e jogar todos os livros dele no chão. Quis quebrar a bonita mesa de vidro fosco e se cortar com os cacos. Quis gritar na cara dele que aquilo não a estava ajudando, não estava levando-a a lugar nenhum. Mas tudo o que fez foi respirar fundo mais uma vez, fechar os olhos e estalar os dedos. Já estava acostumada a trancar suas emoções num lugar escuro, pútrido e escondido dentro dela mesma.

“Eu já sofri demais,” disse calmamente, sentindo sua voz soar estranha até para seus próprios ouvidos. “Nada, nem ninguém pode me ajudar. Eu sempre fui assim, desde pequena, mas ultimamente isso só tem piorado. Os últimos anos têm sido um inferno, eu acordo e o peso do mundo volta sobre meus ombros.”

“Muitas pessoas tiveram vidas difíceis antes de finalmente se estabilizarem. Infelizmente, nem todos têm a mesma oportunidade, mas discutir o porquê já não é algo que cabe a nós, é?”

A voz dele, pensou, era muito bonita. Grave, porém de uma suavidade que parecia com veludo. Era a única coisa que gostava nele. Ele conseguia tranquiliza-la com sua voz que era morna, mas a fazia se sentir como se estivesse ao pé de uma cachoeira. Ouvir sua voz lhe dava uma sensação parecida com aquela quando tomava chocolate quente no inverno, e a bebida descia morna, se instalando em seu estômago, e ela conseguia sentir seu percurso. Era assim que ela se sentia.

“Alguns trazem a religião a esse aspecto social que você chama de injusto, outros culpam fatores históricos, mas de qualquer jeito, são discussões além do nosso alcance.”

“Mas e a minha vida? Também está além do meu alcance? Tudo é...” ela pausou, procurando pela palavra certa, “tudo está... não temos controle sobre a nossa própria vida? Não importa o quanto eu tente...?”

“Não foi isso o que eu disse—”

“Mas é isso o que acontece!” E ela bateu com a mão no apoio da poltrona, sentindo-se como se estivesse explodindo em frustração. “O sol não nasce pra todos,” ela gritou; respiração ofegante. E logo a seguir sentiu suas bochechas queimarem. Respirou fundo e desviou o olhar. “Desculpa.”

Ele continuou em silêncio, mas ela sentia seu olhar pesar sobre ela, trazendo vergonha e culpa. “Não,” ela disse a si mesmo mentalmente, “a culpa é dele, não sua.”

Ela revirou os olhos, farta daquele momento que pareceu se estender além do limite e olhou para ele.

Outra coisa que ela gostava no terapeuta eram seus olhos. Eles eram castanhos—um castanho peculiar, não era escuro, nem claro, nem dourado, nem esverdeado, mas uma cor singular que ela não conseguia entender—e doces. Nunca acusavam nada, nem demonstravam pena. O olhar dele era o olhar de um amigo íntimo ao ouvir suas confissões. Os olhos dele demonstravam confiança, “tudo bem chorar, você não precisa sempre se manter forte.”

“Me desculpa,” ela pediu de novo, um pouco envergonhada, porque ele não tinha culpa nenhuma. Era seu trabalho tentar fazê-la se sentir melhor. Não era sua culpa ela ser um caso perdido, sem solução.

Seus olhos desviaram-se para a parede atrás dela, e ela soube imediatamente que ele estava checando as horas.

“O que te faz se sentir inteira?”

Ela deu de ombros, “não sei.”

Essas coisas nunca vinham fáceis para ela. Tinha sempre que pensar, e pensar, e, ainda assim, nada vinha à sua cabeça. Ela checou as horas em seu próprio relógio de pulso. Ele iria dizer, “eu quero que você—” e passar algum “dever de casa” que ela só poria esforço em fazê-lo enquanto seu pai estivesse dirigindo-a para o consultório.

“Eu quero que você pense no que te faz não se sentir uma carcaça.”

“'Tá,” ela concordou, como sempre, e forçou seu sorriso debochado a desaparecer.

Ele se levantou e se encaminhou para a porta. Ela olhou para o relógio—bem em ponto—e o seguiu. Era sempre a mesma coisa, ele apertava sua mão e ela, insegura do que fazer, fazia o mesmo. Elas eram tão mornas quanto sua voz. Um hábito que ele tinha era de cobrir a mão dela com a sua outra, criando um ninho confortável.

“Até a próxima consulta,” ele sorriu.

Ela olhou para cima e forçou um sorriso. Murmurou uma despedida desajeitada—porque ele era educado demais, cordial demais e alto demais—e se desvencilhou dele.

A maçaneta da porta era fria de encontro a sua mão aquecida. Tal qual sua vida.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Transformation



I looked at your eyes and
they were green like the sea,
in that time. Do you remember it?
Do you remember everything
that we have done? What we—
we’ve been through? That time
you looked at me, crying
and I held you throughout your
bleak sadness that wouldn't
go away, because you looked
at yourself and saw only
only wounds and blood and I
I tried, I swear I tried, but
it would never be enough.
But I looked at you, I looked at
you—
I think classical was
playing on the background,
calming, smooth, sad. It…
it enervated me. Couldn't even
concentrate when you turned;
all sharp angles and hard glint
in your eyes.
I said, "please, don't," but--
but you laughed derisively and
something-- I think something...
I could've heard something break.
I wanted to ask you so,
so many things, but you had
already turned your back
on me, and...
you hadn't even
stopped or turned when I
when I heard you say
"Goodbye, brother," you had said
and all that was left
it was nothing, nothing left
because—
because you had taken everything
you had taken everything with you.


terça-feira, 9 de outubro de 2012

Jimmy

James olhou ao redor e continuou não vendo nada.

O balanço se movimentando ao toque do vento, a gangorra estática, o escorrega desgastado pelo tempo, com a terra já gasta no fim da rampa, o gramado verde e úmido por causa do orvalho, com gotículas que refletiam a luz do sol, o céu azul com nuvens branca, as crianças brincando, as árvores bonitas e grandes… nada, ele não conseguia ver nada, apenas aquela neblina espessa e esbranquiçada fazia seu mundo naquele momento.

Isso e o leve rangido que o balanço fazia.

Ele sentia frio, só usava um agasalho tão gasto que já umedecera com a névoa densa, e um jeans rasgado.
James olhou ao redor e semicerrou os olhos, tentando enxergar algo que não conseguia. Ele não apenas queria ter a visão do parquinho, aquele onde ele passara a infância brincando em sua plena inocência, ele queria respostas.

Ele não sabia o que pensar, então não pensava. Mas não era exatamente assim que as coisas funcionavam; James em seu veto ao pensamento não tentava entender o que era para ser entendido, só aceitava o que sua cabeça formulava cruamente.

Não era boa coisa, porque nada bom saía de sua mente. Eram pensamentos ruins, melancólicos, misantropos e James só se recolhia mais e mais em seu próprio mundo.

Se ele pudesse dizer algo que gostaria de ter, seria uma pessoa. Ele adoraria ter um alguém para ouvi-lo e dar a ele as respostas que necessitava.

Ele não poderia dizer que não tinha aquilo, mas na maioria das vezes, ele achava que só necessitava de um abraço; longo, apertado e com carinho na nuca junto com palavras doces, que o tocasse como uma brisa de Outono.

“Um dia, tudo vai ficar bem.”, “Não se preocupe, eu estou aqui.”, “Você pode contar comigo.”… palavras assim. Mornas e macias.

Tão mornas e tão macias que tinham quase a mesma intensidade de um edredom e uma cama quentinha em uma tarde escura de inverno.

Jimmy arrastou a mão pela calçada em que estava sentado, sentiu a umidade na palma da mão – que já sentia em suas calças – e a levou ao joelho, secando-a com displicência.

Respirando fundo, querendo inspirar todo o ar ao seu redor, encher os pulmões de oxigênio até que se sentisse satisfeito, James se levantou com certa dificuldade, suas panturrilhas doendo, junto com seus joelhos e o incômodo do jeans molhado.

Por um momento, um curto momento no qual o rapaz aproveitou para se alongar – esticando os braços bem acima da cabeça – e começar a caminhar sem rumo pela rua estreita feita de paralelepípedos – que em certo ponto começava a ser asfaltada -, Jimmy se perguntou se algum dia ele encontraria o tipo certo de pessoa para ele.

Ele não pedia nenhum estereótipo; ele não queria alguém que fosse carinhoso o tempo inteiro, nem compreensivo com tudo o que ele pensava e nem todos esses clichês.

Não.

Ele queria uma pessoa que tivesse pulso firme, algo que ele admirava nas pessoas, porque ele desistia muito, muito facilmente.

Ele também queria um alguém que o entendesse, sim, mas quando ele estivesse certo. Não com um tipo de verdade que muda para cada cabeça, não. Quando ele estivesse verdadeiramente certo, porque todo o mundo mente, inclusive para si mesmo.

Ele não se importava com a aparência, ele também não procurava alguém para namorar. Ele só queria alguém para estar com ele.

Ele queria, em seu íntimo, alguém para lhe fazer companhia, sabe? Como comer bolo com cobertura de chocolate e tomar café meio-amargo sob o céu azul-royal, conversando sobre aquele novo jogo de videogame que ambos haviam zerado.

Ele queria alguém para desejar boa noite porque ele não fazia isso. E ele também queria uma pessoa para abraçar quando fosse se despedir. Aliás, ele queria alguém para abraçar quase toda hora.

Mas ele não queria um abraço demorado, muito menos um cheio de sentimentos. Esses deveriam ser guardados para quando ele realmente necessitasse porque assim eles não perderiam o valor, o enorme valor que tinham.

James continuou andando,  enxergando parcialmente o caminho; a neblina ainda cobria sua visão, mas agora ele conseguia enxergar as casas nas ruas mais altas às quais ele não pertencia.

Seus pés o guiavam retamente, como se houvesse uma linha imaginária a ser traçada, mas sua mente não estava lá, naquela rua, deixando junto de si o parquinho, não.

Jimmy estava aéreo, seus pensamentos de amigos a amigos, de situações a situações, de lembranças a lembranças… Sua mente voava alto e ele nem ao menos sabia agora para onde ele estava indo.

Mas ele sabia sobre o que pensava. Ele pensava se algum dia fosse encontrar alguém assim, que se encaixasse na descrição de pessoa certa para ele, mas também pensava, em um curto espaço de tempo, se ele já conhecera essa pessoa.

“Não,” pensou enquanto inspirava uma grande quantidade de ar, “eu com certeza não a conheci,” concluiu.
Nesse devaneio, se perguntou com quem ele realmente se importava e James poderia dizer vários nomes, claro, mas apenas porque estava acostumado com eles.

Jimmy sempre se perguntava inúmeras vezes por dia se ele não amava as pessoas apenas porque estava acostumado com elas. E perceber isso não chegava a doer, mas James pensava se era suposto que doesse, no entanto ele não saberia nunca, porque quando ele pensava, ele só sentia indiferença.

Envergonhado com sua apatia, ele parava de pensar. Ele parava de tentar imaginar o que aconteceria se ele pudesse morrer por uma semana, ele parava de pensar em se tornar uma pessoa melhor e continuava naquela vida ordinária.

Ele também parava de pensar sobre o futuro porque ele se via sozinho e sem saída, humilhante.

Ele não pensava, ele só deixava sua cabeça formular coisas que ele não queria pensar, mas era inevitável. Ele não enchia sua cabeça de pensamentos confusos, sem começo e nem fim, apenas o meio, coisas caóticas e que não o levavam a lugar nenhum.

Mas ele sabia que levava, não um caminho propriamente dito, mas o era. Um abismo, talvez, algum lugar escuro, e tão longo e longe, e arriscado que James pensava que uma vez que entrasse, ele não conseguiria sair.

Mas se ele estivesse pensando no momento, perceberia que no ponto em que estava, ele já não conseguiria voltar.

Jimmy estancou os passos e olhou para trás, a neblina diminuíra um pouco e ele conseguia ver o balanço onde na infância se balançara por horas e mais horas até que quando fosse dormir, ele ainda tivesse aquela sensação de estar voando bem alto. Ele também conseguia ver o escorrega e a gangorra; este era o brinquedo preferido dele, embora tivesse sempre que dividir o mesmo lado com alguém porque os garotos com quem ele brincava eram sempre maiores que ele.

Dando meia volta, ele se encaminhou em direção ao parquinho, indo direto para o balanço enquanto enfiava as mãos nos bolsos do casaco.

James gostaria de voltar para aquela época, onde tudo para ele era feliz. Ele não sentia vergonha de si mesmo quase todo o tempo, quase todos os dias, muito menos quando se lembrava de coisas que fizera na infância.

Ele não era de todo feliz, mas ele se lembrava de não se sentir triste; entretanto se ele fosse sincero consigo próprio, ele saberia dizer que desde aquela época ele implorava a Deus – porque quando pequeno ele ainda acreditava em tal santa imagem – que encontrasse um amigo para ele ficar todo o tempo do mundo ao seu lado.

James sorriu, ele se lembrava disso, não poderia se esquecer das tardes, sentado na janela, falando com Deus, achando que ele o escutaria, implorando, rezando, pedindo com tanta fé que ele dormiria naquelas noites com a cabeça limpa e o corpo leve, achando que no dia seguinte ele encontraria alguém para passar os dias, acompanhado.

Jimmy sentou-se no balanço do meio e seus pés moveram-se pela terra gasta e deu um fraco impulso, encolhendo bem as pernas. Suas pernas haviam crescido demais desde a última vez que sentara ali.

Agarrando firmemente a corrente de ambos os lados, James olhou para cima, as casas tampando o céu de um jeito bonito, as nuvens parecendo se juntar à neblina que era fraca agora, o sol brilhando forte, mas não tão forte a ponto de esquentar o corpo do rapaz que agora quase tremia de frio, seus dentes rangendo, as juntas das mãos doendo, os dedos parecendo mais finos e longos e pálidos.

O cabelo úmido colava-se ao rosto encovado dele, gotinhas quase invisíveis, transparentes, parecendo cristais, formavam quase um manto sobre seus fios negros e desgrenhados.

Ocorreu a James que pedindo “por favor” alguém iria escutá-lo porque mesmo com carência de respostas e abundância de dúvidas, ele não conseguia acreditar que não houvesse mesmo alguém que regesse o universo.

Então, respirando fundo, fechando os olhos, apertando mais e mais a corrente entre os dedos, James expirou todo o ar em seus pulmões e com a voz baixa, um fio de voz, pediu: “Por favor” e esperou por alguns segundos, então abriu os olhos, talvez achando que alguém fosse aparecer na rua, talvez para ver se algo havia mudado.

Mas tudo continuava o mesmo.

Só ele, a neblina e o parquinho.


sábado, 30 de junho de 2012

Passagem de uma Noite Austera


Na TV, um documentário biológico sobre o corpo humano. O que a respiração e a falta dela causam. O garoto batuca a cigarro no cinzeiro, exala a fumaça e prende a respiração. Seu coração acelera mais rápido do que esperava, seu peito começa a doer e trinta segundos mais tarde, ele está exalando como se tivesse corrido uma maratona.

De repente, o canal sai do ar – deixando-o um eterno ignorante quanto ao que acontece no pulmão de um fumante. A TV fica estática, mas ele vê os pequenos grãos negros formarem caminhos na tela branca e se embolarem até ele perder a noção. São grãos negros ou são brancos? Sente sua boca semiabrir, como se sua língua tornasse-se ligeiramente mais grossa e pesada. Ele se inclina para frente, apoiando os cotovelos sobre os joelhos, ele quer descobrir se—

“O que você ‘tá fazendo?”

Um sobressalto que quase o faz pular para fora do sofá e cair sobre o tapete fofo que seus pés esmagam e seus dedos acariciam.

“Eu queria saber se—”

E ele descobre que o que ele queria saber é estúpido demais para se falar. Assim, encarando seu olhar de impaciência, um revirar de olhos à esquina do presente, o garoto desiste de dizer algo.

E o outro bufa. E revira os olhos. E murmura algo que à direita do sofá é impossível de se entender, mas o tom de voz conota tantas coisas que um dos corações presentes no cômodo dói, apertado demais entre a caixa torácica. A respiração acelera e a vista embaça. Dedos se contorcem nos pêlos macios do tapete e no estofamento nodoso do acento.

Na tentativa de se acalmar, acende outro cigarro entre os dedos trêmulos por causa do alto nível de cafetina no sangue e inspira. E inspira mais fundo, até que seus pulmões doam e nenhum oxigênio ou fumaça sejam capazes de passar por seus brônquios. Ele prende a respiração por alguns segundos, saboreando o ardor nos pulmões e na garganta, percorrendo um caminho morno tão íntimo quanto intocado.

Ele não sabe se já se passaram trinta segundos, mas seu peito volta a doer, então ele expira todo o oxigênio e fumaça, que faz um longo, curvilíneo, tortuoso e translúcido caminho perolado à sua frente. Da cor dos ossos em raios-x.

“Você vai acabar tendo um ataque cardíaco” – e pela primeira vez naquela noite monótona e quieta, inquietante, ele ouve algo que se parece com preocupação. Tem um quê disso. Uma linha tênue que cria uma teia ao redor de seu coração, aprisionando-o, puxando-o em direção a algo que em sua cabeça é necessário ser seguido. – “Parece que quer morrer logo de uma vez. Mas eu sei que você não teria coragem.”


E de repente, o enlaço fica mais frágil. A teia tem uma espécie de debate. Ela não pode puxar, pois assim arrebentaria, mas ela não pode simplesmente continuar lá, em uma infinita inércia. O sentido e a necessidade se perdem durante o caminho.

“Eu teria.”

“Não, você não teria.”

E do jeito que é falado é quase como um apelo. E ele se vê perdido e desamparado e confuso quanto ao seu rumo. Nunca nada faz sentido em seus percursos.

“Não sou suicida” – diz. E não sabe o porquê, mas sente que é necessário apontar isto. Ele não é. Ele não diz, contudo, que ele já pensara sobre, ou que já tivera vontade. Ou como ele sempre pensa. Ou como ele sempre acha que esta é a solução de seus problemas. E ele não menciona que uma vez ele se escondeu embaixo da cama e chorou tanto, mas tanto e o dia todo que a única coisa que o impediu de buscar uma faca e acabar com a sua vida bem naquele momento foi a vergonha de encarar as pessoas. Porque ele não estava sozinho, nem nunca estaria.

“Eu sei que não.”

Um silêncio se instala. E ele é leve, calmo e sem exigências. Como o silêncio antes de ir dormir depois de um dia cansativo. A TV continua na estática, jorrando uma iluminação prateada sobre os dois, o sofá e o restante da sala. Um traga o cigarro longa e pensativamente, olhando fixamente para a tela. Olhar perdido.

E então ele começa a se lembrar de tantas coisas que se mesclam a outras e no fim, ele não sabe mais por que começou a pensar sobre aquilo, mas agora ele está pensando. E de repente, a atmosfera está mais pesada. Seu peito dói mais e o cigarro pesa entre seus dedos. A fumaça começa a sufocá-lo, o colarinho da sua camisa o enforca lentamente e ele se remexe, e o puxa, tentando esgarçar a blusa e obter um pouco mais de oxigênio, mas nada funciona. As palavras relembradas o sufocam como se tivessem sido ditas um segundo atrás. Dói e machuca tudo o que toca, e queima, e arde, e é agonizante. Agonizante porque ele sabe que é verdade, ele sabe que nunca mudará, ele sabe que nasceu assim, então aquelas palavras o prendem a uma predestinação dolorosa, a uma vida que ele sabe estar preso. E isso o machuca mais que tudo, porque ele é. Ele é e não há nada que vá fazê-lo deixar de ser.

Suas mãos estão apertadas de encontro ao sofá nodoso. Ele se força a abri-las, a desenterrar as unhas da carne esbranquiçada da palma das mãos. Força-se a se esquecer de que a todo o momento, ele o olha e diz coisas como se—

“Eu fosse uma aberração.”

O sussurro é tão baixo que as palavras saem desengonçadas, roucas e quebradas de sua boca. Ele exala mais fumaça de seu cigarro e fecha os olhos. A estática da TV não é mais interessante. Nada mais é. Ele odeia esses momentos. Quando nada parece ser certo. Quando uma coisa leva a outra e a outra, e tantas outras coisas levam a vários caminhos, cada um mais tortuoso, e humilhante, e doloroso que o outro e nesses momentos ele só quer se trancar no quarto, encolher-se debaixo das cobertas e chorar porque nada mais faz sentido. Só a dor. Porque a dor existe e explica tudo. A ardência, o sangue, a cicatriz, tudo é mais simples.

“Quê?”

Sua voz é afiada como uma faca e o faz encolher-se tanto quanto.

“Pensando alto...”

“Em quê?”

“Em nada.”

“Você faz isso de propósito” – e mais lembranças vêm à tona, porque ele nunca esquece ofensas. Aonde quer que vá, elas são levadas também. Chega ao ponto em que ele percebe não se lembrar da maioria dos acontecimentos, mas apenas das sensações de ódio, ira, tristeza, decepção, rancor. Ele as cataloga pelo nível de tristeza em que elas o colocaram. O resto é esquecido: onde, porquê, como, quando. Não importa. O que resta são as mágoas. – “Você só quer atenção.”

“Não quero.”

“Claro que quer.”

Outro cigarro é aceso e—

“Você não sabe fazer outra coisa além de fumar não?”

Uma de suas mãos procura pelo controle remoto. Qualquer coisa que desvie sua atenção. Ele respira fundo o ar poluído do cômodo.

“Quer saber?” – pergunta, olhando para as mãos trêmulas. – “Quero ficar sozinho.”

Pequeno momento insípido no qual ao seu lado só há um ar de inquietação e surpresa.

Whatever, man.”

E somente um deles se levanta, movimentando o sofá de leve. Isso o faz se sentir tão pequeno e frágil, ele não entende o porquê disso. Talvez por lhe lembrar de que no final, a única coisa que lhe resta é a solidão, com ninguém por perto pra consolá-lo porque todos foram embora.

“Só lembre que eu penso no seu bem.”

As palavras sobem à sua garganta com uma facilidade quase programada, mas elas são naturais, tão naturais que seus lábios se partem para pronunciar a primeira delas, mas ele se impede de dizê-las. Você não pensa em nada.

Outro silêncio se faz presente. Um mais denso e perturbador. De um lado, cheio de palavras não ditas, do outro, cheio de palavras que não conseguem formular uma frase. O último morde o lábio, pestaneja, troca o peso de perna, não sabe o que fazer. Até que ele desiste e sai pela porta de entrada.

A teia se enfraquece; tão frágil e ínfima que ele se pergunta como ela resistiu por tanto tempo. Como ela ainda resiste apesar dos pesares. Tão raquítica que seu coração começa a se tornar insensível à sua presença. E o caminho ao qual ela o leva, já não tem mais importância. Em suas prioridades, ele é secundário. Mas sempre estará lá. Uma força constante que o guia sempre a uma direção rochosa e sinuosa, de trilha incerta. Sempre se fortalecendo por palavras impensadas que vêm do fundo da alma, do coração. Sempre levando a um lugar no qual haja a promessa de redenção. Mas tornando-se fraca por palavras impensadas e rudes, verdadeiras – porque nada machuca mais que a verdade. Palavras cuja origem vem da percepção. Palavras que tem o poder de te levar aonde você não quer ir, aonde não tem volta depois de frequentado. Seu âmago.
 A todos que "acreditam" em mim.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Disregard


I felt like watching the whole world burn. Like I didn’t belong and then it was only me. Me against the world, because no matter how hard I tried, how hard they tried, it’d always be just as it is: a loner wondering through everything that makes earth, every corrupt floor, every pure leaf fallen from a tree. A loner trying to make them feel what she feels, what she says, why she acts like this and like that, why she keeps hiding, lying, pushing people away. Until she’s tired… and then everything’s shut down. No matter how I wanted, I could never let anyone take that feeling away from me. No one I have met could and I was beginning to believe I wouldn’t ever meet someone that was able go past the façade. That would eventually walk in into those tortuous, twisted path that lead to the core of something no one had reached so far, something that even I was scared of. Something that was pretty much fucked up, and confused, and complicated. My spirit, my soul, my heart. Whatever you call it. I mean this that makes us what we are. What we fear, what we hide and why, why this and why that. Why everything. So I came to the hopeless place – one step farther into the labyrinth no one could reach – where I was convinced I was alone in the whole world, because would it matter if I had thousands of people in my life, but trust no one? It wouldn’t, would it? Only shallowly and I was never one to care about shallow. Nothing that couldn’t give me a headache for thinking too much, or reach me in some level of my loneliness, or I don’t know, make my life goes upside down was worth my while. I was like a masochist. Always seeking something that could make me retreat even more, but reality was: I was trying to get used to the fact I wouldn’t change ever, and that there were people like me. People who had struggles and would never overcome them. People who were outsiders and had never met the one who’d make them feel normal. My whole life was spent in trying to achieve conformism, instead of trying to change. Isn’t it… mortifying? Yes, it is. And it ultimately led me to the watching the whole word burn, because then I understood I simply didn’t care about it. I was lost and hopeless. I couldn’t bring myself to worry about what could happen to me or to anyone. I was lacking of empathy. A certain kind, because I still had feelings, I still felt pity for some people. Or restrained love for others. But is it what we should feel? It’s pathetic. I was watching everything burn into reddish little pieces until everything was charcoal and ashes. And although I cared…



I didn’t.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Yin Yang


Depois da tempestade vem a bonança. Sabe o que isso quer dizer? É aquela tranquilidade de espírito que muitos almejam. Que nós almejamos. Nunca entendi muito bem esse ditado. Tá, e daí que depois da tempestade vem a bonança? Já enfrentei tantas tempestades no meu pequeno barquinho frágil, quebradiço, novo, mas com aparência de cem anos. Tantas tempestades que não saberia computar. Tantas que levaram tudo o que eu tinha, que acabei achando que não conseguiria trazer de volta o que havia perdido, e, às vezes, penso que nunca conseguirei. Mas com o tempo – a única constante no mundo todo – percebi que não importa o quanto perdemos de nós mesmos, porque um dia simplesmente lidamos com a falta desses pedacinhos. Um dia a gente percebe que, bem, foda-se, fazer o quê? A vida é assim, é uma merda, é inconstante. Esperar que mantivéssemos aquela inocência de criança para a vida toda é, simplesmente, ingênuo demais. Mas e depois? E a bonança? Nunca entendi esse provérbio porque nunca conheci a bonança. Para mim, essa calmaria que vinha depois das tempestades era constante. A meu ver, no desfecho tudo daria certo. Quão inocente de mim. Porque afinal, o provérbio definitivo deveria ser “Depois da tempestade vem a bonança. E vice-versa”, mas quem gostaria de ouvir isso? A vida é cheia de pessoas que pensam de modo otimista, e qual delas gostaria de saber que, no fim das contas, a bonança não é o que persevera?  No entanto, com quase duas décadas de invernos vivenciados, a gente adquire uma mentalidade diferente daquela que a gente tinha há muito ou há pouco tempo. É bem como os sábios chineses filosofaram: a vida é composta de forças negativas e positivas, o Yin e o Yang. Ambas as energias estão presentes na vida de qualquer pessoa, pois elas são complementares. A luz não pode existir sem escuridão, tampouco o inverso. Basicamente, elas são opostas, mas não se opõem. Em sua natureza, elas buscam o equilíbrio no fluxo constante do universo. E é assim que eu me sinto agora. Não importa se sou Yin ou se sou Yang, o fato é que sempre serei o que sou independente do que eu faça, mas sempre terei em mim uma semente da energia oposta. Não importa quantas tempestades virão, quantos milhares de vezes terei que reconstruir meu pequeno barquinho cansado, sempre haverá uma bonança dentro de mim esperando o momento certo para despertar e se espalhar, equilibrar-se.

sábado, 31 de março de 2012

Déjà vu


“Como você conseguiu esse corte?” – o médico faz pressão no meu pulso para que eu o encare.

Olho para ele. Olhos escuros e sobrancelhas finas. – “Eu caí – acho que desmaiei” – o ar condicionado do hospital me faz tremer; olho para minha mão e ela está úmida e de um branco amarelado com as unhas arroxeadas. Minha roupa toda está encharcada.

“O corte é reto demais. Parece com um corte infligido” – sinto uma tontura quando vagamente o encaro. Fecho meus olhos, sinto náuseas agora. – “Vertigem?” – ele me pergunta antes de eu vomitar em seu jaleco.

Sempre tive estômago fraco. – “Desculpe” – peço ainda de olhos fechados, sentindo minha cabeça rodar enquanto ouço alguém dizer que eu havia perdido muito sangue.

Eu não consigo lembrar como vim parar aqui, só consigo me lembrar do dia seco, da sensação de estar sujo o dia inteiro, a ardência no nariz enquanto este sangrava por causa do calor.

Alguém me faz deitar na maca e eu encaro o teto branco por alguns segundos, tentando fazer a tontura e a ardência no estômago passarem. Desisto e volto a fechar os olhos.

Lembro-me do céu azul-cobalto, do crepúsculo colorindo o horizonte de vermelho-sangue, roxo. Da falta de vento, do calor. Da grama bem verde iluminada por um poste cuja lâmpada de luz fraca piscava em intervalos de minutos.

Também faz parte do cenário inúmeras sepulturas, centenas delas. Todas organizadas em fileiras e colunas. O cemitério estava quase deserto àquela hora, havia algumas pessoas ao longe, alguns coveiros e eu.

Podia ver os buquês serem colocados em cada cova. Se eu prendesse a respiração e me concentrasse por alguns segundos, conseguiria ouvir o murmúrio do choro de uma moça. O sussurro dos dois caras atrás dela, dizendo que eles deveriam ir embora. Talvez primos ou irmãos.

Tudo parecia ser um filme em minha cabeça. Eu não sentia nada, era só um vazio dentro de mim. Era como se alguém tivesse me desligado da tomada e eu só conseguisse presenciar, estar lá. E só.

Lembro-me de ter agachado… – não. De ter caído como se tivesse perdido minha força… – não. Lembro-me de ter caído... pelo cansaço de uma vida inteira carregada nas costas. Sem sensações, sem sentimentos, sem prazer. Isso. Eu caíra porque era como se eu não pudesse mais aguentar toda aquela fraqueza, toda aquela angústia.

Apoiara minhas mãos sobre a sepultura, sem ar e fora nesse momento que eu vira o nome que estava gravado nela. Joseph, Jeremy, Johnny…  nunca conseguia gravar nomes. Mas era de um homem que lutara na Segunda Guerra antes de morrer. Talvez um alemão refugiado.

O que mais me recordo é da diferença entre meus joelhos sobre a grama macia e minhas mãos sobre a sepultura áspera.

Jaz aqui eternamente” – me recordo de ter lido e gravado – “um homem cuja diferença foi almejada.” – as letras eram pequenas e desgastadas, cobertas por poeira. – “Um exemplo a ser seguido para quem persevera em provir o seu melhor.

Uma pontada forte na minha cabeça me faz comprimir os olhos com força antes de abri-los abruptamente.

“Minha” – percebo a dificuldade em formar palavras, minha língua parece inchada – “cabeça...”

“Você bateu com a cabeça em algum lugar?” – fecho meus olhos com força, a voz dele parece perfurar minha têmpora.

“Não sei” – rezo para que ele consiga entender o que eu disse.

“Vou administrar um analgésico.”

Respiro fundo, sentindo uma sonolência ao mesmo tempo em que a dor vai se tornando fraca. Consigo ouvir o timbre calmo do médico me dizendo que eu sentirei um pouco de sono, mas que é normal por causa do remédio.

Esforço minha memória e consigo me lembrar da primeira brisa que eu senti essa noite. Lembro-me de ter ouvido um trovão, mas sabia que não iria chover tão cedo; sei que não pensei duas vezes antes de me abaixar e pegar o pequeno retrato dentro de uma moldura e batê-lo contra a lápide.

O vidro que protegia a foto se espatifou em minhas mãos. Olhei ao redor, mas ninguém pareceu perceber o que eu acabara de fazer. – “Desculpa” – murmurei para o túmulo antes de buscar pelo pedaço mais afiado, esperava por um que pudesse me tirar dali.

“Você vai ficar aqui esta noite” – ouço a voz do médico bem de longe; abro os olhos e percebo como eles estão pesados e como o ambiente está se desfazendo em misturas de cores e manchas.

Lembro-me de ter encarado meus pulsos por um longo tempo antes de erguer o pedaço de vidro estilhaçado.
A ardência, o sangue escorrendo, o palpitar no músculo, a pequena parcela de loucura correndo por minhas veias e indo se esparramar nos meus joelhos… sinais de que ainda havia vida em mim.

A última coisa que eu me lembro de sentir era essa vertigem que eu sinto agora, que parecia querer arrancar meu cérebro fora. Lembro-me de tentar erguer meu braço tal como tento agora... é inútil: não consigo. Também não conseguira outrora.

Forço-me a abrir os olhos novamente, mais pesados que nunca, sinto vontade de coçá-los de tanto que ardem, mas meus braços não obedecem mais aos meus comandos. Encaro a fonte de luz mais próxima de mim, tal como encarei o poste que havia no cemitério. Procuro pelo médico, mas não vejo ninguém, só leitos. Volto minha atenção à lâmpada.

Tudo parece tão igual, é como se fosse um déjà vu. Aquela redoma brilhante machuca meus olhos de pupilas dilatadas, decido parar de lutar contra a dor densa atrás dos meus olhos e permito minhas pálpebras descansarem, me entregando àquela sensação que sentira antes, quando achara que tudo estava acabado.

  • 02/01/2011


domingo, 4 de março de 2012

Entre Ondas

A onda molhou meus pés e a sensação fria correu pela minha coluna, me arrepiando. Ergui meu braço e vi os pelos claros arrepiados.

“É lindo, não é?” – ele perguntou e eu o encarei por alguns poucos segundos, necessários para eu entender que ele se referia ao mar à nossa frente.
Era imenso e estava tão calmo lá, bem no fundo, onde o oceano se juntava com o céu branco, cheio de nuvens cinza e uma neblina rasa mais abaixo.

Sim, era lindo, mas não houve necessidade de respostas, nunca houve.

Estávamos calados há bastante tempo, só olhando e admirando, recebendo as ondas fracas que se chocavam contra os nossos pés descalços, nos desequilibrando de leve enquanto a areia vinha e voltava arrastada pelas ondas espumosas.

Senti a necessidade de falar algo. Qualquer coisa que cessasse aquela ansiedade, aquele nervosismo. Acabar com aquele silêncio calmo como o som das ondas ou tranquilo como o céu branco neve, mas eu não tinha o que falar.

Parecia-me, também, que quando eu fosse falar eu teria que pigarrear para continuar. Não me importei e disse a primeira coisa que me veio à cabeça:

“No que” – limpei a garganta – “No que você está pensando?” – perguntei.

Ele franziu as sobrancelhas no mesmo momento em que se virou para mim. Seus olhos castanhos com íris maiores que o normal mostravam confusão enquanto ele inclinava a cabeça de leve.

Ele era adorável.

“Não agora, naquela hora” – expliquei, voltando a olhar o oceano. Mas logo voltei a encará-lo. Ele era bem mais alto que eu e para olhá-lo nos olhos eu precisava inclinar ligeiramente a cabeça para cima. 
Me perguntava, afinal, se ele reparava que meus olhos ficavam mais claros assim, com toda a luz daquele enorme céu sobre eles. – “Sempre pensamos em algo enquanto observamos uma paisagem bonita…”

Ele suspirou e eu esperei. – “Primeiro eu pensei em História” – ele soltou uma risadinha pelo nariz e eu continuei esperando. – “Quando as pessoas pensavam que a Terra era quadrada, mas depois eu pensei se havia alguém na mesma situação que a minha, se perguntando a mesma coisa.”

“Se perguntando se” – hesitei – “existem alguém na mesma—”

“Não” – ele me interrompeu. – “Se no final estamos sempre sozinhos. Se um dia eu encontro alguém em quem eu consiga confiar...” – explicou, suspirando de leve enquanto fitava seus pés – “se perguntando tudo isso na beira da praia, sozinho com seus pensamentos.”

Ele era adorável, repeti para mim.

“Você encontra” – disse – “você encontra sim.” – repeti como se isso fosse dar mais verossimilhança à frase.

“Às vezes, acho que sim, e, às vezes, acho que não” – ele murmurou como se estivesse me contando um segredo. Sua voz baixa enquanto uma ave piava ao longe, talvez uma gaivota. – “É muito complicado essas coisas…” – sua voz ficou mais baixa, quase mais baixa que o som das ondas – “Meus avôs estão juntos até hoje” – disse e por um momento seu olhar desenhou uma rota até o fim do oceano, onde ele se encontrava com o céu e parecia que caso seguisse reto, ele chegaria lá, onde ninguém alcança, onde todos sonharam em estar quando inocentes. – “Mas meus pais não” – concluiu e seu olhar se perdeu, como se o lugar onde ele estivesse prestes a chegar desmoronasse à sua frente. 

“É complicado...” – respondi, tentando ajudá-lo em suas questões escondidas em lugares profundos dentro dele. – “Mas… pode parecer besteira, mas, às vezes, eu sinto demais” – murmurei baixinho, meio com vergonha de confessar esse tipo de sentimento que eu tenho. – “E na maioria das vezes que eu estou com você, eu sinto que você vai ser feliz” – ele sorriu timidamente, uma mistura de emoção e embaraço. – “Você é o tipo de pessoa que merece isso.”

Ele me olhou e eu o olhei, e por mais que ele fosse maior que eu, eu o sentia tão pequeno, e choroso, e inocente. E ele desviou o olhar, ainda sorrindo de leve, talvez feliz por estar esperançoso, otimista. Nem que fosse apenas por um curto momento.

Voltei a encarar aquele ponto bem distante que parecia inalcançável para quem observa da beira da praia, mas ele me chamou a atenção.

“Oi?”

“E no que você estava pensando?”

Respirei fundo. Abri a boca, mas voltei a fechá-la quando novamente uma gaivota piou ao longe. As ondas ficando cada vez maiores e mais fortes na mesma proporção que o vento pegava mais velocidade.

“Eu me perguntava o que você sentia” – encarei-o de volta. Se os olhos dele fossem castanho-esverdeados, eles estariam verdes agora. – “Eu não quero que você se sinta mal, nem quero que você sofra.”

Ele voltou a fitar seus pés e eu os olhei por curiosidade. Uma água-viva flutuava perto deles e ele se abaixou para pegá-la daquele jeito certo que não queimava a palma da mão. – “Noventa e oito porcento de água, hum?” – ergueu os olhos e me encarou e eu fiz o mesmo e o encarei. – “É como se” – ele hesitou, meio em dúvida no que falar – “elas fossem o seu próprio habitat” – semicerrei os olhos, não entendendo o que ele queria dizer. – “Como alguém poderia se sentir sozinho assim? Vazio? Como se não pertencesse ao lugar ao qual vive?” – ele me perguntou e eu sacudi a cabeça de leve. – “Como alguém não poderia?” – ele soltou uma risada amarga e se agachou, sentando-se na beira da praia no exato momento em que uma onda chocava-se contra meus pés e as tíbias dele.

Olhei para ele em confusão e ele deu dois tapinhas na areia ao lado dele. Olhei para as ondas que voltavam, para o ponto inalcançável e para o céu –  que parecia se acabar exatamente naquele ponto apenas para se transformar em água – sendo riscado por duas gaivotas voando em círculos.

Por que não? Me sentei.

“Isso é um saco…” – ele murmurou, ainda com a água-viva na mão.

“Eu sei” – concordei meio reticente. – “Sabe…” – disse, mas me calei. Eu sentia frio agora que da cintura para baixo, tudo meu estava molhado.

“O quê?” – ele disse, despejando a medusa na água.

“Conheci alguém” – disse de volta e ele me olhou estranho. – “Eu acho que estou gostando de alguém” – expliquei.

Ele me olhou surpreso, virando-se de frente para mim. – “Quem?”

“Eu não sei o nome dele” – murmurei. – “Na verdade, ele não deve nem notar a minha existência...” – olhei para ele e novamente ele me olhou estranho, confuso. – “Eu só o observo” – suspirei.

“Então como você pode dizer que está gostando dele?” – sua voz soou alta demais para meus ouvidos, era como se ele estivesse gritando que eu era superficial.

“É algo na voz dele, na calma que ele aparenta ter” – comentei, estranhando somente agora eu estar gostando de alguém que fosse calmo – se é que ele fosse isso. – “E quando ele olha para mim” – sorri amargamente, desviando meu olhar, repousando a lateral do meu rosto em meus braços cruzados sobre os joelhos – “eu sinto que ele sabe que me conhece de algum lugar. Sabe… desconhecidos íntimos?” – perguntei, olhando para ele. – “Talvez se eu o conhecesse melhor, eu não gostasse dele, ou não sentisse tudo o que eu sinto quando eu o vejo agora... talvez tudo isso acontecesse, mas talvez não, e é por isso que eu prefiro não me arriscar. Eu prefiro ficar aqui, de longe, observando-o e sentindo todas essas coisas. Todas essas coisas que eu sempre quis sentir” – murmurei, fechando os olhos enquanto a imagem dele me vinha em mente como nas tantas outras vezes que eu me forcei a imaginá-lo. – “O jeito como as coisas que eu acho feias ficam bonitas nele quase me assusta, às vezes.” – disse mais para mim do que para ele, quase um sussurro de voz rouca. – “Você me acha idiota por isso?” – perguntei, abrindo meus olhos e encarando-o. Ele tinha uma expressão tão triste e piedosa que me fez sentir insegura e pequena.

“Não” – ele disse – “tudo bem em fugir, às vezes.” – e ele se aproximou de mim, passando seus braços sobre os meus ombros e me puxando mais para perto. Deitei minha cabeça na curva entre seu ombro e pescoço e suspirei, abraçando-o de volta.



  • 10/09/2010