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domingo, 12 de maio de 2013

Queda Livre


“Como se você estivesse caindo e caindo, em queda livre, sem ninguém pra te oferecer uma mão. Caindo em direção à escuridão, e não tem como parar, porque não há barreiras, não há paredes, não há nada além de tristeza e desespero, solidão e medo. Tudo é intangível, feito de escuridão. Você quer parar, mas não consegue porque não tem como. E quando você percebe isso, que não há uma saída, uma forma de parar a vertigem, a queda livre, você atinge o chão. Dói e machuca e te deixa desnorteado, mas eventualmente você entende onde está, apesar de não poder ver nada ao redor. Você atinge o fundo do poço. Você tenta escalar de volta, mas não há como. Você chora e chora e chora mais um pouco. Você quer sair dali, você quer o que antes tinha; um pouco de luz, um pouco de sol, um pouco de paz. Um pouco de contato, um pouco de felicidade. É vazio dentro de você. Tão vazio dentro quanto fora e isso machuca, parece ser uma mão enlaçando seu coração e o apertando, constringindo-o dentro do seu peito. Dói. Uma agonia sem fim que te faz deitar na cama, se encolher e chorar até soluçar, até não conseguir respirar, até gritar porque aquilo ali não é vida. Não deveria ser assim, nunca, jamais. Te machuca fisicamente com a força do golpe que é mental. Te deixa nu e vulnerável. Te deixa forte. Lugares austeros constroem pessoas austeras, que se esqueceram de sonhar, que pararam, que foram obrigadas a parar. Que não sabem amar porque nunca conheceram amor. Uma hora você desiste. Uma hora já não dá mais pra fingir que a escuridão vai dar lugar a uma parede, a uma escada que você vai poder escalar até encontrar um raio de sol. Não. Não dá. Não há nada ao seu redor e você percebe isso. Não há porque lutar, tentar, fingir, se manter forte. É um momento muito solitário. Você não tem ninguém com quem contar e se tivesse, não contaria do mesmo jeito. Você já fez sua cabeça. Uma boa metáfora, não? É assim que você se sente antes de tentar se matar. É assim que você se sente quando tem depressão. Essa doença que te faz parar de ver a luz quando é ela o que te mais te rodeia. Que te faz se trancar num quarto escuro e dormir por horas a fio porque a vida lá fora é horrível e assustadora e te faz mal, como se fosse um bicho asqueroso rastejando pela sua pele, te dando arrepios que você não pode conter.”

“Você ainda se sente assim?”

“O que mais além disso eu tenho para sentir?”

sábado, 30 de junho de 2012

Passagem de uma Noite Austera


Na TV, um documentário biológico sobre o corpo humano. O que a respiração e a falta dela causam. O garoto batuca a cigarro no cinzeiro, exala a fumaça e prende a respiração. Seu coração acelera mais rápido do que esperava, seu peito começa a doer e trinta segundos mais tarde, ele está exalando como se tivesse corrido uma maratona.

De repente, o canal sai do ar – deixando-o um eterno ignorante quanto ao que acontece no pulmão de um fumante. A TV fica estática, mas ele vê os pequenos grãos negros formarem caminhos na tela branca e se embolarem até ele perder a noção. São grãos negros ou são brancos? Sente sua boca semiabrir, como se sua língua tornasse-se ligeiramente mais grossa e pesada. Ele se inclina para frente, apoiando os cotovelos sobre os joelhos, ele quer descobrir se—

“O que você ‘tá fazendo?”

Um sobressalto que quase o faz pular para fora do sofá e cair sobre o tapete fofo que seus pés esmagam e seus dedos acariciam.

“Eu queria saber se—”

E ele descobre que o que ele queria saber é estúpido demais para se falar. Assim, encarando seu olhar de impaciência, um revirar de olhos à esquina do presente, o garoto desiste de dizer algo.

E o outro bufa. E revira os olhos. E murmura algo que à direita do sofá é impossível de se entender, mas o tom de voz conota tantas coisas que um dos corações presentes no cômodo dói, apertado demais entre a caixa torácica. A respiração acelera e a vista embaça. Dedos se contorcem nos pêlos macios do tapete e no estofamento nodoso do acento.

Na tentativa de se acalmar, acende outro cigarro entre os dedos trêmulos por causa do alto nível de cafetina no sangue e inspira. E inspira mais fundo, até que seus pulmões doam e nenhum oxigênio ou fumaça sejam capazes de passar por seus brônquios. Ele prende a respiração por alguns segundos, saboreando o ardor nos pulmões e na garganta, percorrendo um caminho morno tão íntimo quanto intocado.

Ele não sabe se já se passaram trinta segundos, mas seu peito volta a doer, então ele expira todo o oxigênio e fumaça, que faz um longo, curvilíneo, tortuoso e translúcido caminho perolado à sua frente. Da cor dos ossos em raios-x.

“Você vai acabar tendo um ataque cardíaco” – e pela primeira vez naquela noite monótona e quieta, inquietante, ele ouve algo que se parece com preocupação. Tem um quê disso. Uma linha tênue que cria uma teia ao redor de seu coração, aprisionando-o, puxando-o em direção a algo que em sua cabeça é necessário ser seguido. – “Parece que quer morrer logo de uma vez. Mas eu sei que você não teria coragem.”


E de repente, o enlaço fica mais frágil. A teia tem uma espécie de debate. Ela não pode puxar, pois assim arrebentaria, mas ela não pode simplesmente continuar lá, em uma infinita inércia. O sentido e a necessidade se perdem durante o caminho.

“Eu teria.”

“Não, você não teria.”

E do jeito que é falado é quase como um apelo. E ele se vê perdido e desamparado e confuso quanto ao seu rumo. Nunca nada faz sentido em seus percursos.

“Não sou suicida” – diz. E não sabe o porquê, mas sente que é necessário apontar isto. Ele não é. Ele não diz, contudo, que ele já pensara sobre, ou que já tivera vontade. Ou como ele sempre pensa. Ou como ele sempre acha que esta é a solução de seus problemas. E ele não menciona que uma vez ele se escondeu embaixo da cama e chorou tanto, mas tanto e o dia todo que a única coisa que o impediu de buscar uma faca e acabar com a sua vida bem naquele momento foi a vergonha de encarar as pessoas. Porque ele não estava sozinho, nem nunca estaria.

“Eu sei que não.”

Um silêncio se instala. E ele é leve, calmo e sem exigências. Como o silêncio antes de ir dormir depois de um dia cansativo. A TV continua na estática, jorrando uma iluminação prateada sobre os dois, o sofá e o restante da sala. Um traga o cigarro longa e pensativamente, olhando fixamente para a tela. Olhar perdido.

E então ele começa a se lembrar de tantas coisas que se mesclam a outras e no fim, ele não sabe mais por que começou a pensar sobre aquilo, mas agora ele está pensando. E de repente, a atmosfera está mais pesada. Seu peito dói mais e o cigarro pesa entre seus dedos. A fumaça começa a sufocá-lo, o colarinho da sua camisa o enforca lentamente e ele se remexe, e o puxa, tentando esgarçar a blusa e obter um pouco mais de oxigênio, mas nada funciona. As palavras relembradas o sufocam como se tivessem sido ditas um segundo atrás. Dói e machuca tudo o que toca, e queima, e arde, e é agonizante. Agonizante porque ele sabe que é verdade, ele sabe que nunca mudará, ele sabe que nasceu assim, então aquelas palavras o prendem a uma predestinação dolorosa, a uma vida que ele sabe estar preso. E isso o machuca mais que tudo, porque ele é. Ele é e não há nada que vá fazê-lo deixar de ser.

Suas mãos estão apertadas de encontro ao sofá nodoso. Ele se força a abri-las, a desenterrar as unhas da carne esbranquiçada da palma das mãos. Força-se a se esquecer de que a todo o momento, ele o olha e diz coisas como se—

“Eu fosse uma aberração.”

O sussurro é tão baixo que as palavras saem desengonçadas, roucas e quebradas de sua boca. Ele exala mais fumaça de seu cigarro e fecha os olhos. A estática da TV não é mais interessante. Nada mais é. Ele odeia esses momentos. Quando nada parece ser certo. Quando uma coisa leva a outra e a outra, e tantas outras coisas levam a vários caminhos, cada um mais tortuoso, e humilhante, e doloroso que o outro e nesses momentos ele só quer se trancar no quarto, encolher-se debaixo das cobertas e chorar porque nada mais faz sentido. Só a dor. Porque a dor existe e explica tudo. A ardência, o sangue, a cicatriz, tudo é mais simples.

“Quê?”

Sua voz é afiada como uma faca e o faz encolher-se tanto quanto.

“Pensando alto...”

“Em quê?”

“Em nada.”

“Você faz isso de propósito” – e mais lembranças vêm à tona, porque ele nunca esquece ofensas. Aonde quer que vá, elas são levadas também. Chega ao ponto em que ele percebe não se lembrar da maioria dos acontecimentos, mas apenas das sensações de ódio, ira, tristeza, decepção, rancor. Ele as cataloga pelo nível de tristeza em que elas o colocaram. O resto é esquecido: onde, porquê, como, quando. Não importa. O que resta são as mágoas. – “Você só quer atenção.”

“Não quero.”

“Claro que quer.”

Outro cigarro é aceso e—

“Você não sabe fazer outra coisa além de fumar não?”

Uma de suas mãos procura pelo controle remoto. Qualquer coisa que desvie sua atenção. Ele respira fundo o ar poluído do cômodo.

“Quer saber?” – pergunta, olhando para as mãos trêmulas. – “Quero ficar sozinho.”

Pequeno momento insípido no qual ao seu lado só há um ar de inquietação e surpresa.

Whatever, man.”

E somente um deles se levanta, movimentando o sofá de leve. Isso o faz se sentir tão pequeno e frágil, ele não entende o porquê disso. Talvez por lhe lembrar de que no final, a única coisa que lhe resta é a solidão, com ninguém por perto pra consolá-lo porque todos foram embora.

“Só lembre que eu penso no seu bem.”

As palavras sobem à sua garganta com uma facilidade quase programada, mas elas são naturais, tão naturais que seus lábios se partem para pronunciar a primeira delas, mas ele se impede de dizê-las. Você não pensa em nada.

Outro silêncio se faz presente. Um mais denso e perturbador. De um lado, cheio de palavras não ditas, do outro, cheio de palavras que não conseguem formular uma frase. O último morde o lábio, pestaneja, troca o peso de perna, não sabe o que fazer. Até que ele desiste e sai pela porta de entrada.

A teia se enfraquece; tão frágil e ínfima que ele se pergunta como ela resistiu por tanto tempo. Como ela ainda resiste apesar dos pesares. Tão raquítica que seu coração começa a se tornar insensível à sua presença. E o caminho ao qual ela o leva, já não tem mais importância. Em suas prioridades, ele é secundário. Mas sempre estará lá. Uma força constante que o guia sempre a uma direção rochosa e sinuosa, de trilha incerta. Sempre se fortalecendo por palavras impensadas que vêm do fundo da alma, do coração. Sempre levando a um lugar no qual haja a promessa de redenção. Mas tornando-se fraca por palavras impensadas e rudes, verdadeiras – porque nada machuca mais que a verdade. Palavras cuja origem vem da percepção. Palavras que tem o poder de te levar aonde você não quer ir, aonde não tem volta depois de frequentado. Seu âmago.
 A todos que "acreditam" em mim.

sábado, 31 de março de 2012

Déjà vu


“Como você conseguiu esse corte?” – o médico faz pressão no meu pulso para que eu o encare.

Olho para ele. Olhos escuros e sobrancelhas finas. – “Eu caí – acho que desmaiei” – o ar condicionado do hospital me faz tremer; olho para minha mão e ela está úmida e de um branco amarelado com as unhas arroxeadas. Minha roupa toda está encharcada.

“O corte é reto demais. Parece com um corte infligido” – sinto uma tontura quando vagamente o encaro. Fecho meus olhos, sinto náuseas agora. – “Vertigem?” – ele me pergunta antes de eu vomitar em seu jaleco.

Sempre tive estômago fraco. – “Desculpe” – peço ainda de olhos fechados, sentindo minha cabeça rodar enquanto ouço alguém dizer que eu havia perdido muito sangue.

Eu não consigo lembrar como vim parar aqui, só consigo me lembrar do dia seco, da sensação de estar sujo o dia inteiro, a ardência no nariz enquanto este sangrava por causa do calor.

Alguém me faz deitar na maca e eu encaro o teto branco por alguns segundos, tentando fazer a tontura e a ardência no estômago passarem. Desisto e volto a fechar os olhos.

Lembro-me do céu azul-cobalto, do crepúsculo colorindo o horizonte de vermelho-sangue, roxo. Da falta de vento, do calor. Da grama bem verde iluminada por um poste cuja lâmpada de luz fraca piscava em intervalos de minutos.

Também faz parte do cenário inúmeras sepulturas, centenas delas. Todas organizadas em fileiras e colunas. O cemitério estava quase deserto àquela hora, havia algumas pessoas ao longe, alguns coveiros e eu.

Podia ver os buquês serem colocados em cada cova. Se eu prendesse a respiração e me concentrasse por alguns segundos, conseguiria ouvir o murmúrio do choro de uma moça. O sussurro dos dois caras atrás dela, dizendo que eles deveriam ir embora. Talvez primos ou irmãos.

Tudo parecia ser um filme em minha cabeça. Eu não sentia nada, era só um vazio dentro de mim. Era como se alguém tivesse me desligado da tomada e eu só conseguisse presenciar, estar lá. E só.

Lembro-me de ter agachado… – não. De ter caído como se tivesse perdido minha força… – não. Lembro-me de ter caído... pelo cansaço de uma vida inteira carregada nas costas. Sem sensações, sem sentimentos, sem prazer. Isso. Eu caíra porque era como se eu não pudesse mais aguentar toda aquela fraqueza, toda aquela angústia.

Apoiara minhas mãos sobre a sepultura, sem ar e fora nesse momento que eu vira o nome que estava gravado nela. Joseph, Jeremy, Johnny…  nunca conseguia gravar nomes. Mas era de um homem que lutara na Segunda Guerra antes de morrer. Talvez um alemão refugiado.

O que mais me recordo é da diferença entre meus joelhos sobre a grama macia e minhas mãos sobre a sepultura áspera.

Jaz aqui eternamente” – me recordo de ter lido e gravado – “um homem cuja diferença foi almejada.” – as letras eram pequenas e desgastadas, cobertas por poeira. – “Um exemplo a ser seguido para quem persevera em provir o seu melhor.

Uma pontada forte na minha cabeça me faz comprimir os olhos com força antes de abri-los abruptamente.

“Minha” – percebo a dificuldade em formar palavras, minha língua parece inchada – “cabeça...”

“Você bateu com a cabeça em algum lugar?” – fecho meus olhos com força, a voz dele parece perfurar minha têmpora.

“Não sei” – rezo para que ele consiga entender o que eu disse.

“Vou administrar um analgésico.”

Respiro fundo, sentindo uma sonolência ao mesmo tempo em que a dor vai se tornando fraca. Consigo ouvir o timbre calmo do médico me dizendo que eu sentirei um pouco de sono, mas que é normal por causa do remédio.

Esforço minha memória e consigo me lembrar da primeira brisa que eu senti essa noite. Lembro-me de ter ouvido um trovão, mas sabia que não iria chover tão cedo; sei que não pensei duas vezes antes de me abaixar e pegar o pequeno retrato dentro de uma moldura e batê-lo contra a lápide.

O vidro que protegia a foto se espatifou em minhas mãos. Olhei ao redor, mas ninguém pareceu perceber o que eu acabara de fazer. – “Desculpa” – murmurei para o túmulo antes de buscar pelo pedaço mais afiado, esperava por um que pudesse me tirar dali.

“Você vai ficar aqui esta noite” – ouço a voz do médico bem de longe; abro os olhos e percebo como eles estão pesados e como o ambiente está se desfazendo em misturas de cores e manchas.

Lembro-me de ter encarado meus pulsos por um longo tempo antes de erguer o pedaço de vidro estilhaçado.
A ardência, o sangue escorrendo, o palpitar no músculo, a pequena parcela de loucura correndo por minhas veias e indo se esparramar nos meus joelhos… sinais de que ainda havia vida em mim.

A última coisa que eu me lembro de sentir era essa vertigem que eu sinto agora, que parecia querer arrancar meu cérebro fora. Lembro-me de tentar erguer meu braço tal como tento agora... é inútil: não consigo. Também não conseguira outrora.

Forço-me a abrir os olhos novamente, mais pesados que nunca, sinto vontade de coçá-los de tanto que ardem, mas meus braços não obedecem mais aos meus comandos. Encaro a fonte de luz mais próxima de mim, tal como encarei o poste que havia no cemitério. Procuro pelo médico, mas não vejo ninguém, só leitos. Volto minha atenção à lâmpada.

Tudo parece tão igual, é como se fosse um déjà vu. Aquela redoma brilhante machuca meus olhos de pupilas dilatadas, decido parar de lutar contra a dor densa atrás dos meus olhos e permito minhas pálpebras descansarem, me entregando àquela sensação que sentira antes, quando achara que tudo estava acabado.

  • 02/01/2011