sábado, 19 de novembro de 2011

Tarde Qualquer

Às vezes, paro e fico olhando
A parede parece tão interessante
Quanto a árvore tocada pela brisa
Numa tarde de qualquer estação
Relembro fragmentos
Que já sei estarem velhos
Redesenhados
Inconfiáveis
Relembro dos desenhos
Que na TV me faziam a alegria
Das músicas
Que de tanto ouvir sabia de cor
Das brincadeiras
Que por pobreza aprendi a brincar
Dos provérbios
Que me atraía desvendar
Então percebo que
Aquele não mais meu mundo é
Sacudo a cabeça
Como quem acaba de sonhar
E saio do transe
Que como rastro deixa a nostalgia
E volto para a minha vidinha
Que com o tempo aprendi a viver
Sem alegrias
Encantos
Simplicidade
Facilidade
Volto à vida
A qual vida não deveria se chamar

domingo, 13 de novembro de 2011

Memento

Mas já passou. Claro, não ia ficar para sempre. Aquele sentimento pleno, a efemeridade, a fresta de luz surgindo por entre nuvens foi embora, porque era só uma coisa mínima. Toda a realização, todo o orgulho do antes discutido foi-se lentamente a passos preguiçosos, como se me dissesse “aproveite-me ao máximo possível, garota”. Mas se foi, tudo se foi. Só ficou o que antes era turvo e sombrio, triste e amargurado, desespero em todos os segundos. Depois do anoitecer, tudo voltou ao que era antes, como em todas as noites. Como em todas as madrugadas, a hora mais escura do dia, o céu mais escuro da noite. Só restaram todos os choros, todas as giletes, todas as cicatrizes, todo o sangue. Mas o que sobra de tudo isso? Somente uma fase. Aquela na qual você olha para algo, para qualquer coisa, olha para fora ou para dentro, e você vê aquilo que antes era caótico, que antes não conseguia ver. Que antes não era captado por sua percepção. Você entende e então, de repente – de repente – você para de chorar, porque uma paz de espírito irrequieta te acomete. Inquieta porque não é paz, longe disse, é só um acordo entre seu lado esquerdo do cérebro e o direito. “Vamos parar de chorar? Isso não faz bem para a nossa menina. Toda essa loucura de não saber o que está sentindo, essa mistura de dores e decepções, essa dor no peito, olha a bagunça que ela é!”. Então você para, porque aquela paz buliçosa age como um calmante em seus músculos, um ópio natural; e você fica lá, encarando o nada, olhando para a vida com apatia, sentindo tristeza por dentro, porque esse é o único sentimento que nunca vai embora. Que sempre fica com você como um lembrete.

domingo, 15 de maio de 2011

Sobre se Perder e Esconder

A gente é assim, vai se perdendo nos outros, se perdendo na gente, se perdendo dos outros, se perdendo da gente até que percebe que está na hora de se encontrar. Encontrar em algo, em alguém. Em algum cheiro, em algum lugar, em algum livro, em algum amigo.

A gente vai se perdendo no alheio, esquecendo-se das vontades não nossas, mas dele, esquecendo que as pessoas são uma alma presa em um labirinto, por vezes, intocável.

Vai seguindo em frente, buscando, escavando, procurando por aquilo que deseja das outras pessoas. Aquela intimidade sutil, aquele sorriso espontâneo, o pedido de desculpas cheio de remorso, aquele “eu quero estar com você” não falado, mas timidamente evidente.

Até que a gente muda de foco sem perceber. Não queremos mais a pessoa como ela é, mas a queremos nos amando, nos entendendo, nos aceitando, respeitando, nos querendo.

Estou me fazendo entender? O que quero dizer é que, às vezes, nós temos o azar – essa necessidade triste – de irmos preocupando-nos com o que a pessoa sente da gente e não com a pessoa em si. A gente ressalta que ela existe como um ser humano que é sujeito à decepção e vai se deixando perder naquele sentimento especial, naquele conforto, nos gestos, nos olhos, nos abraços. Tudo muito cheio de culpa, cheio de segredos que não quer revelar.

A gente vai se tornando tão egoísta, sabe? Só querendo, necessitando, ansiando, desejando. A gente se torna mesquinho e egoísta com a falta de amor. Queremos aquela pessoa só para gente.

Não é estranho? Não é estranho que não liguemos – mesmo que sem querer, sem querer de verdade, assim sem intenção de fazer sofrer – para quem amamos contanto que sejamos amados?

Não é isso o que eu quero dizer. Nos importamos, sim, claro que nos importamos. Mas é que em um ponto do caminho, parece que a gente esquece que aquele ser humano tem vontades, tem uma vida, tem uma história, tem seus segredos, suas dores e, principalmente, um sorriso que esconde tudo isso e tudo aquilo.

Aí percebemos que existe, sim, algo por trás de toda aquela fachada – que afinal, é só mais uma fachada. Algo bem assim como a gente. Algo que sofre, que chora, que grita, que se machuca, que anseia por amor tanto quanto nós mesmos. Algo como nós.

Por isso que é complicado se perder em alguém na busca de tentar achar a pessoa que é. Precisa de cuidado extra, atenção múltipla e muita perseverança. Nem todos são labirintos fáceis; têm uns que têm monstros, pesadelos, esquinas sombrias, armadilhas e tudo o que nem pensamos existir.

Às vezes, só queremos nos perder, mas não estamos dispostos a abrir nossas janelas e deixar alguém entrar. Como pode tanto egoísmo? Como se pode coexistir assim? Mas é aquela sensação de fraqueza, de insegurança, de impotência, de incapacidade. É que o medo nos leva a inventar personalidades odiáveis que nem sabíamos da existência.

Mas a gente aprende – tem sempre alguém que aprende. A gente vai aprendendo a aprender, a perseverar, a esquecer – os traumas, as tristezas, os amores perdidos, as sensações de vazio, de incompetência, o desespero – e vamos conseguindo viver assim, na medida do possível, tentando não afastar pessoas que saibam demais da gente – ou pelo menos um pouquinho mais que todo mundo – nos dando aquela sensação de insegurança, fragilidade, como se nossos defeitos estivessem todos expostos, todos os nossos medos e segredos.

Mas é assim, a gente aprende. Com o tempo, a gente aprende a aprender.

É sempre nisso que eu tento pensar. Fecho os olhos, respiro fundo, medito por um momento e repito para mim em voz alta para evocar a confiança: “Com o tempo, a gente aprende a aprender”, aí repito novamente: “A gente aprende a aprender”. Repito assim, baixo e lentamente para a frase entrar na cabeça. Que assim a frase ecoa em meus pensamentos, e não importa quão pequena seja a quantidade de vezes que ela chegue a ecoar, porque nesses curtos instantes eu realmente consigo acreditar que sim, a gente aprende a aprender.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Limite Branco


"Sinto-me terrivelmente vazio. Há pouco estive chorando, sem saber exatamente por quê. Às vezes, odeio esta vida, estas paredes, essas caminhadas de casa para a aula, da aula para casa, esses diálogos vazios, odeio até este diário, que não existiria se eu não me sentisse tão só. O que eu queria mesmo era um ombro amigo onde pudesse encostar a cabeça, uma mão passando na minha testa, uma outra mão perdida dentro da minha. O que eu queria era alguém que me recolhesse como um menino desorientado numa noite de tempestade, me colocasse numa cama quente e fofa, me desse um chá de laranjeira e me contasse uma história. Uma história longa sobre um menino só e triste que achou, uma vez, durante uma noite de tempestade, alguém que cuidasse dele."

— Limite Branco - Caio Fernando Abreu


quarta-feira, 20 de abril de 2011

Utopia

Não há motivos para odiar a espécie que se é. Quero dizer, somos assim e somos o mesmo. Somos hipócritas. Somos tudo o que é de ruim. Somos os próprios defeitos que são inerentes a nós. 

Somos assim sim, vamos nos decepcionando com essa verdade, que para mim é absoluta, e nos afastando do conhecimento, do reconhecimento que, às vezes, só às vezes e talvez para só poucas pessoas, alguém pode ter mais qualidades a defeitos, ou menos defeitos somente.

Mas bons olhos nunca se enganam, são como narizes de cães treinados, farejam até a alma: suas emoções e estado de espírito. 

Talvez não exista; talvez aquele que você goste só esteja enterrando seu lado negro dentro de si mesmo. Muito mais profundo que a sete palmos, mais trancado que por sete chaves. Somente cada um sabe de suas reais intenções – seu egoísmo, sua mesquinhez, sua hipocrisia, sua maldade – e somente cada um sabe que nunca as mostrará a ninguém. Seja por vergonha ou por medo.

A vergonha sempre foi nosso inimigo número um. 

Talvez, somente por esse motivo, seja aceitável – admirável até – que nos amemos como Cobain uma vez disse: “acho que eu simplesmente amo as pessoas demais, tanto que chego a me sentir mal”.

Mas não, se fosse para ser assim, que fossem amados somente os personagens. De livros, de séries, de o que quer que fosse. Profundos, verdadeiros, amáveis, odiáveis, o que fosse. Jogo limpo, amo porque te conheço ou te odeio porque vos conheci.
 
Prefiro as coisas claras, mesmo que meu âmago seja tudo exceto isso. Gosto de saber no que estou me metendo, com quem estou convivendo, o que alguém está sentindo, onde estou errando, quem está errando. Não gosto das coisas caóticas, embaçada pela falta dos óculos adquiridos com o passar da vida, aqueles que te fazem perceber o que a pessoa sente de verdade, o que ela pensa. 

Não gosto das coisas como estão, das pessoas como são. Não foi uma decisão que tomei, não optei por isso, tampouco foi uma escolha. Ocorreu assim, sem eu querer, sem influência de terceiros.

Talvez quem me guiou a isso foi a decepção. Um dia a gente se cansa, se desgasta, desaprende a viver convencionalmente, um dia a gente morre por dentro, um dia a gente... Portanto, não me julgue por não conseguir perseverar, criar falsas esperanças, confiar. 
 
Eu sou um produto do meio, não o contrário. Antes fosse o contrário, talvez assim eu seria suficientemente feliz para dizer que não há motivos para odiar a espécie que se é. E eu acreditaria nisso porque se o meio fosse um produto de mim, viver não seria um inferno. 

quinta-feira, 3 de março de 2011

Pg. 140, Para Sempre Teu, Caio F.

“(...) Era 29 de dezembro e ele descobriu que Clarice Lispector estava em Porto Alegre, autografando seu novo livro, ao vivo e em cores, numa estação de TV. Caio havia lido todos os seus livros e sabia tudo a respeito dela, mas não conhecia a musa. Para tudo o que está fazendo, vai lá e entra na fila de autógrafos:
Vi uma mulher linda e estranhíssima num canto. Estava toda de preto, com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo, ela era absolutamente incrível. Me aproximei, dei os livros para ela autografar e entreguei meu Inventário.

Um amigo comum que sabia da fascinação de Caio por Clarice se oferece para apresentá-los, mas Caio, tímido e inseguro, vai fugindo de fininho por um corredor, como descreve depois, em carta:
Ela saiu na porta e me chamou – “Fica comigo”, pediu. Fiquei. De repente ela me olhou e disse que me achava muito bonito, parecido com Cristo. Tive 33 orgasmos consecutivos. 

Nessa noite, Caio e Clarice conversaram como velhos amigos. Além de compará-lo a Cristo, ela disse que ele lhe lembrava o Quixote e decretou, “Você é meu Quixote”, personagem de Cervantes sobre quem ele escreveria um belo monólogo no final da vida: O homem e a mancha. Falaram literatura, dos autores que ambos admiravam e conheciam, Caio saiu de lá com o telefone e o endereço dela no bolso: “Quando for ao Rio, me procure”, disse. Ele mal conseguiu dormir naquela noite. Ao chegar em casa, terminou de escrever a carta à Hilda: Nunca ninguém havia me impressionado tanto”, desabafou. Em 1971, sempre abandonando Porto Alegre atrás do lugar ideal para viver, e entusiasmado com a promessa (que não se cumpriria) de ver Clarice, Caio volta mais uma vez para o Rio de Janeiro. Vai morar em Botafogo, numa comunidade hippie. A contracultura estava no auge e ele, que colecionava atitudes revolucionárias, deixava crescer ainda mais o cabelo, usa túnicas indiana, experimenta mescalina, chá de cogumelos, maconha, como era de praxe na época, e naquele momento tudo parece fazer sentido conforme declarou numa entrevista:
Vivi como hippie no Rio de Janeiro durante um tempo. Cheguei a passar uma semana inteira sem fazer nada, sem comer – só tomando cafezinho e comprimido para passar a sensação de fome. Dormia na praia do Leme. De noite ia ao Conservatório de Teatro para fazer um curso sobre alquimia. Emagreci até ficar com 54 quilos. Mas foi muito bom. Nunca me senti tão feliz, tão seguro de mim.

terça-feira, 1 de março de 2011

Giovanna

Olhava pela janela da sala a rua suja e cinzenta, alagada. Era um beco estreito entre dois prédios onde das lixeiras emanava um cheiro azedo dia e noite.

A janela, tal como o cortiço, era suja e embaçada. Quase não conseguia distinguir o contorno dos transeuntes do quinto andar onde morava. Sem elevador. O carpete do pequeno cortiço era vermelho, mas tão sujo que havia virado cor de tijolo molhado.

Odiava aquele lugar. Aquela sujeira, a mobília usada, velha, o cheiro de lixo, o calor que subia do chão até seu andar, as escadas ruidosas e o carpete cor de tijolo presente em toda aquela estalagem medíocre.

Às vezes, tirava os óculos – tinha um elevado grau de miopia – e só ficava olhando para o nada, no escuro. Imaginava-se em outro lugar, em outra vida. Imaginava-se fora dali enquanto encarava o teto descascado – o qual não conseguia discernir. London, Tokyo, Paris, Venezia, Dublin, Ontario, Roma, Madrid, Lisboa, Amsterdan... Imaginava-se em todos os lugares, menos ali, naquela ruela de São Paulo. Numa cidade onde chuva, calor e cinza se misturavam durante o ano inteiro.

Quando acordava, percebia onde estava, onde ainda estava. E seu mundo escorria feito água em direção ao ralo. Jogava-se na cama – na verdade, nem chegava a sair dela – e passava o dia inteiro lá. Ia assim, desaprendendo a viver, se cansando de respirar.

Seu psicólogo dizia, com aquela falta de emoção, que eles trabalhariam naquilo. O sentimento iria passar, porque essas coisas passam, não passam? Dizia que a tristeza, um dia, iria embora, como a felicidade havia ido, completava por pensamentos.

Nesses momentos, se lembrava da sua vida no interior. Como as coisas eram mais fáceis, ainda que fossem mais difíceis. Naquele pequeno mundo, onde ninguém era capaz de ter grandes ambições além de sair daquela pequena cidade que ninguém nunca ouviu falar, ela nasceu, cresceu e viveu. 

Só olhava ao redor, vendo as pessoas. Feias, sem esperanças, de sonhos partidos, de corações suturados. Pessoas que haviam cansado de viver, de sobreviver. Que haviam cansado de escolher roupas, penteados, ideais, conversas. Que se prendiam apenas às fofocas e ao tempo. Que eram feias não só por fora, mas por dentro, naquele abismo escuro, labirinto enevoado.

Via isso. O que a pessoa era por dentro. Odiava sair, porque só conseguia ver o interior das pessoas manchado pelo exterior. Sentia vergonha por elas, se perguntava por que ainda existiam, se nunca sentiram vergonha de ir à rua.

Às vezes, se entupia de antidepressivos. Porque cansava de viver. Não queria se matar, nunca quis. Sempre pensava nos livros que ainda tinha que ler, na vida que ainda tinha que aproveitar, nas pessoas que valiam a pena conhecer, nos lugares, nas sensações, nos sentimentos; nunca quis se matar.

A verdade é que já quisera. Mas um dia, uma circunstância a mudou. Assistira a uma reportagem sobre um rapaz que morrera depois de jogar videogame por três dias direto.

Morrer.

Assim, tão simples, sem saber que vai morrer, sem perceber, sem entrar em pânico, sem choro, sem ninguém saber, sem últimos momentos dos quais possa se lembrar. Mas é claro que não vai se lembrar. Sem poder fazer disso um dia especial. Pedir desculpas, dizer que ama, essas coisas. Passar um último tempo com alguém.

Percebera isso. E dormir nunca foi tão assustador quanto aquele dia. “Eu vou acordar?” era a pergunta. O nervosismo era tanto que não conseguia fechar os olhos e relaxar, mas o outro dia veio. O sol invadia suas pálpebras, os pássaros do vizinho lhe davam dor de cabeça – assim, já de manhã – e o som do rádio ligado irritava seus tímpanos.

Não morrera.

Suspirou fundo. Às vezes esquecia-se de como era a sensação do ar chegando fundo aos pulmões, bem lá aos alvéolos. Assim como a fumaça do cigarro que sempre fumava. Destruindo seus órgãos respiratórios.

Era um paradoxo. Não queria morrer, mas se autodestruía. Tomava seu coquetel de antidepressivos planejando dormir por dois, três dias. Acordava, fazia uma coisa ou outra e voltava a tomar as pílulas.

Só queria se livrar daquela realidade esmagadora, sabe? Desejava a facilidade que encontrava nos braços de Morpheus.

Muitos diziam que a vida era especial, maravilhosa, única, mas em sua opinião, vida era dolorosa, injusta, triste por natureza, inquietante.  Por isso que com freqüência desistia dela. Desistia da sua aparência, dos seus demônios, dilemas. Desistia da frustração que era a sua vida.

Desistia da sua incapacidade de conversar com as pessoas, resolver seus problemas, conviver com elas. Desistia do lugar onde vivia, da vida que mantinha, das pessoas que conhecia. Tinha tanto pelo que desistir, mas não desistia.

Havia coisas como subir no telhado da casa da sua mãe, lá no interior, deitar e só observar as estrelas. “Aquele é o Cruzeiro do Sul” – seu pai sempre apontava, mas nunca conseguia identificar.

Havia também aquele senhor que vendia picolés de todos os sabores e gostava de conversar sobre tudo e todos. Durante toda a sua morada no interior o ouviu falar sobre o fim da Bossa Nova, a história do MPB e, claro, os melhores sabores de sorvete.

Também havia aqueles dias de inverno, onde era impossível enxergar as casas – velhas, caídas, cheias de mofo, de tristeza palpável – por trás da neblina, aquelas pessoas que encontrava no metrô, que pareciam ter a alma limpa, ter toda uma história cheia de encantos por trás do rosto sonolento, tombando para o lado.

Costumava escrever sobre elas. Descrevia um gesto, às vezes simples, habitual, às vezes construía toda uma vida por trás das palavras. Usava suas pessoas, as do metrô, as da biblioteca que freqüentava, o jovem com quem cruzava no corredor quando voltava de noite da faculdade, e a dona da estalagem.

Ela era muito velha, cabelos brancos, marcas da velhice em todo o corpo, meio corcunda. Sua voz era fina e suas mãos sempre tremiam. Sentia pena dela. Quando a olhava, só desejava não chegar àquele ponto. Sozinha no mundo, sem mais ninguém, só à espera da morte.

Nessas horas, quando se perguntava se já não era assim, “sozinha no mundo, sem mais ninguém” e não conseguia definir qual era a diferença entre si e a dona do cortiço, se esforçava para se lembrar das conversas com seu pai, “Definitivamente, o Oscar este ano foi mais que injusto”. O passatempo com sua mãe que lhe ensinara a tricotar no início da adolescência, “Tricotar é mais que calmante”, “Só faço isso porque gosto das roupas”, respondia.

Também tentava se lembrar de seu retorno à pequena cidade, quando revia seus pets – como os chamava. Ficava durante horas, quase o dia inteiro acariciando o pelo de seu Birmanês, assobiando para seus pássaros – tinha periquitos, pintinhos, calopsitas, papagaios e uma arara. Brincava com seu Labrador, fazendo-o buscar sua bolinha de morder várias e várias vezes. Implicava com seu coelho, levantando suas patas traseiras quando ele tentava pular.

Tinha muito pelo que desistir, mas tinha muito mais pelo que viver. E quando guardava os óculos na gaveta, encarava o teto e respirava fundo aquele cheiro acre se lembrava disso. Lembrava-se de que a vida não valia a pena ser vivida, mas vez ou outra – bem de vez em quando – ela era pintada com momentos tão bons quanto os picolés que mordia quando criança.


Giovanna – já disse que acho esse seu nome muito bonito? às vezes, a gente vai se perdendo, esquecendo de quem a gente é, deixando frestas para a tristeza se instalar. Às vezes, tentamos nos achar e acabamos nos perdendo mais ainda. Eu sei que até lá – caminho longo, chato, tortuoso, cheio de voltas – vai demorar um pouco, talvez muito, quem sabe? Mas em um dia, em uma vida, em um século, em um milênio você vai estar de volta à sua Inglaterra. Porque o que uma vez foi nosso, sempre será nosso e sempre estará conosco, nem que só uma pequena fração de seu todo.
Te desejo só felicidade esse ano, um bolo molhadinho de chocolate, muito dinheiro – pra dar e vender – e um parabéns cheio de abraços. Feliz aniversário.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Perdas

A gente é assim: chora, soluça, esperneia, quebra, pragueja, xinga, sente odiosidade, mas depois só resta aquela quietação das emoções fortes, deixando o rastro de tristeza em todo o corpo, em toda a mobília, em todo o mundo.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Polos

Havia algo no sorriso dele.

Seu olhar era sempre distante, opaco, melancólico. Desviava fácil dos olhos de algumas pessoas e se perdia na parede, ou na costura do ombro alheio, na nuvem que estivesse perpassando o céu, ou nos detalhes do piso, do asfalto. Era desses que gostava de observar tudo.

Seu sorriso era triste. Era verdadeiro; ele não sorria por educação, embora fosse um rapaz extremamente educado. Do tipo que não pensa duas vezes antes de dizer “Me desculpe” ou pedir “Com licença”. Suas frases sempre seguidas de “por favor” e um “obrigado”.

Mas era triste. Escondia uma tristeza que nem todos conheciam ou conheceriam. Todo um mundo era escondido por trás daquele sorriso que, mesmo sincero, não chegava aos olhos. Toda uma vida, todo um mistério, um sofrimento, um labirinto.

Seus olhos eram grandes e levemente caídos no canto externo. Eram doces, mas afiados. Eram bonitos, eram sinceros, eram perfeitos para a pessoa que ele era.

Quando perturbado, colocava uma mecha – geralmente do lado esquerdo, era canhoto – para trás da orelha. E era isso o que ele fazia agora. Ele não dizia nada enquanto eu dizia tudo. Tudo o que viesse em mente. Tudo o que estivesse me incomodando, tudo o que eu achava que o incomodava. Mas ele continuava calado.

Às vezes ele falava, xingava, gritava, quebrava coisas, colocava tudo para fora. Sua língua era tão ferina quanto unhas de gatos. Suas palavras machucavam e formavam cicatrizes que demorariam a cicatrizar. Então brigávamos e ficávamos dias sem falar. Mas ele era sempre o cavalheiro educado, charmoso, consciente de seus – e meus – defeitos e vinha com aquela conversa mansa, cheia de entendimentos que terminava na cama.

No final, ele me fazia perceber que era a pessoa mais especial que existia. Sabia conversar sobre tudo. Música, literatura, pintura... Artes em geral. Ele dizia que sem a Arte, não haveria humanidade, não haveria mundo. Não haveria sequer vida.

Mas geralmente ele só se martirizava, escutando calado, tentando não jogar na minha cara o que sabia que me machucaria. Daí eu tentei ser uma melhor versão de mim mesmo, para ele. Tentava decifrar suas expressões, seus silêncios e acho que no fim, eu me perdi em seu labirinto.

Em algum ponto, começamos a ser o que não éramos. Nos amávamos tanto que esse amor acabou por nos afastar um do outro. Era como um de seus romances. Enveredados para a tragédia, embaralhados com uma mistura de esperança, mas no fim, sem já sabermos disso, ela desapareceria como o sol ao chegar da noite.

Ele sempre gostou da liberdade, da sinceridade, da honestidade e eu o estava prendendo a algo que ia de encontro aos ideais dele. Eu estava ancorando o nosso romance a algo que talvez não devesse mais existir.

Eu o amei tanto que eu me tornei cego a ponto de achar que ele não perceberia o que eu estava fazendo. Logo ele, o cara mais inteligente que já conheci. O que sempre sacava as tiradas sarcásticas, a ironia que ninguém percebia.

Mas ele percebeu. Percebeu que eu não era mais o mesmo, que só estava tentando ser uma versão melhorada de mim mesmo. E então ele se chateou, ficou triste. Quase não sorria mais. Ele era desses. Entristecia-se, não saía da cama para mais nada. Lutava para comer, se levantar, viver.

Ele queria que eu o surpreendesse a cada dia, que eu fosse nada mais, nada menos do que eu mesmo. Que eu o fizesse chorar e então o fizesse sorrir. Queria que eu continuasse fazendo-o me odiar durante as discussões, mas que o fizesse me amar logo depois daquela transa, onde nossos corpos suados estivessem tão cansados para se mover que acabariam dormindo agarrados um ao outro.

Era tanto amor, tanta ironia. Eu sabia – nós sabíamos – que aquilo se tornaria mais um de seus contos. No final, nosso romance seria eternizado em mais um de seus textos que seria lido, relido, criticado, aclamado.

Viriam perguntas. “Por quê, por que eles terminaram?”, “Por que sempre tão sem esperança?”, “Por que não um final feliz?”. Ele soltaria uma curta risada sarcástica, e faria alguma crítica sobre sempre necessitarmos de um romance perfeito e com um final admirável para continuarmos vivendo em meio a sarjeta.

Sua voz é calma e triste, quando resolve falar: – “Eu amo você” – Eu sei que me ama. E eu sei que mesmo depois disso continuaremos a nos amar. Ele me encara nos olhos.  Como sempre faz com as pessoas pelas quais sente interesse. Olha da cabeça aos pés, observa, parece ler a mente, os pensamentos e então você se sente despido diante dele. Não é difícil encontrar alguém que se sinta intimidado pela sua postura, seu olhar, embora ele seja a pessoa mais doce – e ferina – que eu já conheci.

Eu sei, mon amour. Eu também o amo. E sei que você também sabe disso. Sei que errei, mas sei que você entende o meu erro e me perdoa por ele. Você é tão bom em desvendar meus pensamentos quanto eu aprendi a ser bom em desvendar os seus.

“Mas” – digo o que ele não consegue dizer – “isso não é o suficiente.” – ele continua me encarando. Porque ele é desses; não abaixa a cabeça, enfrenta seus medos de frente. – “Me desculpe” – eu peço, avançando um, dois passos à frente e abraçando-o com força – “eu sinto tanto.”

“Não é só sua culpa, é nossa culpa.” – ele responde; sua voz é grave, rouca, gutural. Me arrepia quando sussurrada.

“Eu amo você, Caio.” – digo bem baixo, perto do ouvido dele. Aquilo parece ser efêmero demais para eu falar longe dele. Esse momento deve ser só nosso pela uma última vez.

“Eu sei,” – sussurra de volta e eu sinto aquele frio percorrer minha espinha – “e eu também te amo.”