Mostrando postagens com marcador conformismo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador conformismo. Mostrar todas as postagens

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Em Ponto



“Eu tenho câncer,” ela disse.

Ele não ofereceu nada. Nenhum sinal de simpatia, empatia, pesar. Seu terapeuta a encarou com um pedido mudo para que continuasse.

Ela respirou fundo e fechou os olhos por um momento. Era difícil conversar sobre isso, sobre seus pontos fracos, sobre o que a assustava à noite e a impedia de sair. O que a fazia entrar em um estado de inércia—dias, semanas, meses—e chorar na hora de dormir. Na hora de viver.

O ambiente em si era confortável. Nada muito profissional, além da estante cheia de livros sobre doenças mentais. Na primeira vez em que estivera ali, ela vira um dos títulos que ela mais gostava—A Menina que Roubava Livros—e dali em diante, passou a fazer de um hábito seu, checar todos os títulos que não fossem relacionados à saúde.

“Minha família,” finalmente, depois de um bom tempo, ela respondeu. “As pessoas.”

Ela esperou, mas já sabia que o silêncio continuaria presente. Era sempre assim, o bastardo sádico. Ele a fazia soltar uma informação que ela definitivamente não queria e com isso não a deixava ir. Com um anzol enferrujado, porém afiado, ele a pescava.  Ela se contorcia e tentava fugir, mas de nada bastava.

Ela já esperava que ele não oferecesse resposta até que ela terminasse. Nem meias palavras, nem consolações. Em parte, gostava disso. Não queria nenhum conforto no momento.

“Vai me destruindo por dentro, minhas vísceras, até que a única coisa que resta é a casca. É isso o que eu sou. Uma carcaça.”

Dessa vez ele franziu as sobrancelhas, mergulhado em pensamentos, e acenou. Remexendo-se devagar, no silêncio daquela manhã, ele correu os olhos pelo cômodo.

“O que mais te corrói por dentro?”

“Corrói? Hum...” ela comprimiu os lábios pensativa.

O teto dele era bastante bonito, meio vitoriano. Um candelabro no centro da sala. De súbito, pensou, “deve ser uma grana isso aqui.” E era. Mas sua família podia arcar com as despesas. Sua família, na verdade, podia pagar tudo, exceto coisas simples como bem-estar. Paz, felicidade. Coisas simples. Ela sorriu amargamente.

“Injustiça.”

“Qual tipo?”

“Algumas pessoas merecem mais do que elas têm... algumas merecem menos. Mas quem decide isso? Talvez seja só meu ponto de vista, até porque eu não conheço todo o mundo pra dizer essas coisas—e também não vou entrar na parte política, ou de gente que deveria estar na cadeia—mas tem gente que sofre, e sofre, e nada de bom vem. Por quê? Por que tem gente que é feliz enquanto há gente que é infeliz desde uma pequena idade? Por que tem gente que é feliz enquanto há pessoas morrendo de fome?” Ela respirou fundo, “não estou dizendo que essas pessoas deveriam ser infelizes por haver gente infeliz. Não. Ninguém nunca entende o que eu quero dizer. O que eu quero dizer é, por que existem coisas tão distintas no mundo? Gente tão feliz enquanto há gente que nem uma refeição completa durante o dia tem.”

“Você se considera uma pessoa que merece mais do que tem?”

O “sim!” em sua boca estava a ponto de sair, mas ela se refreou. “Não,” disse, desviando o olhar. “Mas também não mereço o que eu recebo. Eu venho tentando tanto, mas nada de bom sai disso.”

“Por que você acha isso?”

Sua respiração soou chiada no silêncio do cômodo. Ela quis gritar, levantar da poltrona confortável de couro e jogar todos os livros dele no chão. Quis quebrar a bonita mesa de vidro fosco e se cortar com os cacos. Quis gritar na cara dele que aquilo não a estava ajudando, não estava levando-a a lugar nenhum. Mas tudo o que fez foi respirar fundo mais uma vez, fechar os olhos e estalar os dedos. Já estava acostumada a trancar suas emoções num lugar escuro, pútrido e escondido dentro dela mesma.

“Eu já sofri demais,” disse calmamente, sentindo sua voz soar estranha até para seus próprios ouvidos. “Nada, nem ninguém pode me ajudar. Eu sempre fui assim, desde pequena, mas ultimamente isso só tem piorado. Os últimos anos têm sido um inferno, eu acordo e o peso do mundo volta sobre meus ombros.”

“Muitas pessoas tiveram vidas difíceis antes de finalmente se estabilizarem. Infelizmente, nem todos têm a mesma oportunidade, mas discutir o porquê já não é algo que cabe a nós, é?”

A voz dele, pensou, era muito bonita. Grave, porém de uma suavidade que parecia com veludo. Era a única coisa que gostava nele. Ele conseguia tranquiliza-la com sua voz que era morna, mas a fazia se sentir como se estivesse ao pé de uma cachoeira. Ouvir sua voz lhe dava uma sensação parecida com aquela quando tomava chocolate quente no inverno, e a bebida descia morna, se instalando em seu estômago, e ela conseguia sentir seu percurso. Era assim que ela se sentia.

“Alguns trazem a religião a esse aspecto social que você chama de injusto, outros culpam fatores históricos, mas de qualquer jeito, são discussões além do nosso alcance.”

“Mas e a minha vida? Também está além do meu alcance? Tudo é...” ela pausou, procurando pela palavra certa, “tudo está... não temos controle sobre a nossa própria vida? Não importa o quanto eu tente...?”

“Não foi isso o que eu disse—”

“Mas é isso o que acontece!” E ela bateu com a mão no apoio da poltrona, sentindo-se como se estivesse explodindo em frustração. “O sol não nasce pra todos,” ela gritou; respiração ofegante. E logo a seguir sentiu suas bochechas queimarem. Respirou fundo e desviou o olhar. “Desculpa.”

Ele continuou em silêncio, mas ela sentia seu olhar pesar sobre ela, trazendo vergonha e culpa. “Não,” ela disse a si mesmo mentalmente, “a culpa é dele, não sua.”

Ela revirou os olhos, farta daquele momento que pareceu se estender além do limite e olhou para ele.

Outra coisa que ela gostava no terapeuta eram seus olhos. Eles eram castanhos—um castanho peculiar, não era escuro, nem claro, nem dourado, nem esverdeado, mas uma cor singular que ela não conseguia entender—e doces. Nunca acusavam nada, nem demonstravam pena. O olhar dele era o olhar de um amigo íntimo ao ouvir suas confissões. Os olhos dele demonstravam confiança, “tudo bem chorar, você não precisa sempre se manter forte.”

“Me desculpa,” ela pediu de novo, um pouco envergonhada, porque ele não tinha culpa nenhuma. Era seu trabalho tentar fazê-la se sentir melhor. Não era sua culpa ela ser um caso perdido, sem solução.

Seus olhos desviaram-se para a parede atrás dela, e ela soube imediatamente que ele estava checando as horas.

“O que te faz se sentir inteira?”

Ela deu de ombros, “não sei.”

Essas coisas nunca vinham fáceis para ela. Tinha sempre que pensar, e pensar, e, ainda assim, nada vinha à sua cabeça. Ela checou as horas em seu próprio relógio de pulso. Ele iria dizer, “eu quero que você—” e passar algum “dever de casa” que ela só poria esforço em fazê-lo enquanto seu pai estivesse dirigindo-a para o consultório.

“Eu quero que você pense no que te faz não se sentir uma carcaça.”

“'Tá,” ela concordou, como sempre, e forçou seu sorriso debochado a desaparecer.

Ele se levantou e se encaminhou para a porta. Ela olhou para o relógio—bem em ponto—e o seguiu. Era sempre a mesma coisa, ele apertava sua mão e ela, insegura do que fazer, fazia o mesmo. Elas eram tão mornas quanto sua voz. Um hábito que ele tinha era de cobrir a mão dela com a sua outra, criando um ninho confortável.

“Até a próxima consulta,” ele sorriu.

Ela olhou para cima e forçou um sorriso. Murmurou uma despedida desajeitada—porque ele era educado demais, cordial demais e alto demais—e se desvencilhou dele.

A maçaneta da porta era fria de encontro a sua mão aquecida. Tal qual sua vida.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Jimmy

James olhou ao redor e continuou não vendo nada.

O balanço se movimentando ao toque do vento, a gangorra estática, o escorrega desgastado pelo tempo, com a terra já gasta no fim da rampa, o gramado verde e úmido por causa do orvalho, com gotículas que refletiam a luz do sol, o céu azul com nuvens branca, as crianças brincando, as árvores bonitas e grandes… nada, ele não conseguia ver nada, apenas aquela neblina espessa e esbranquiçada fazia seu mundo naquele momento.

Isso e o leve rangido que o balanço fazia.

Ele sentia frio, só usava um agasalho tão gasto que já umedecera com a névoa densa, e um jeans rasgado.
James olhou ao redor e semicerrou os olhos, tentando enxergar algo que não conseguia. Ele não apenas queria ter a visão do parquinho, aquele onde ele passara a infância brincando em sua plena inocência, ele queria respostas.

Ele não sabia o que pensar, então não pensava. Mas não era exatamente assim que as coisas funcionavam; James em seu veto ao pensamento não tentava entender o que era para ser entendido, só aceitava o que sua cabeça formulava cruamente.

Não era boa coisa, porque nada bom saía de sua mente. Eram pensamentos ruins, melancólicos, misantropos e James só se recolhia mais e mais em seu próprio mundo.

Se ele pudesse dizer algo que gostaria de ter, seria uma pessoa. Ele adoraria ter um alguém para ouvi-lo e dar a ele as respostas que necessitava.

Ele não poderia dizer que não tinha aquilo, mas na maioria das vezes, ele achava que só necessitava de um abraço; longo, apertado e com carinho na nuca junto com palavras doces, que o tocasse como uma brisa de Outono.

“Um dia, tudo vai ficar bem.”, “Não se preocupe, eu estou aqui.”, “Você pode contar comigo.”… palavras assim. Mornas e macias.

Tão mornas e tão macias que tinham quase a mesma intensidade de um edredom e uma cama quentinha em uma tarde escura de inverno.

Jimmy arrastou a mão pela calçada em que estava sentado, sentiu a umidade na palma da mão – que já sentia em suas calças – e a levou ao joelho, secando-a com displicência.

Respirando fundo, querendo inspirar todo o ar ao seu redor, encher os pulmões de oxigênio até que se sentisse satisfeito, James se levantou com certa dificuldade, suas panturrilhas doendo, junto com seus joelhos e o incômodo do jeans molhado.

Por um momento, um curto momento no qual o rapaz aproveitou para se alongar – esticando os braços bem acima da cabeça – e começar a caminhar sem rumo pela rua estreita feita de paralelepípedos – que em certo ponto começava a ser asfaltada -, Jimmy se perguntou se algum dia ele encontraria o tipo certo de pessoa para ele.

Ele não pedia nenhum estereótipo; ele não queria alguém que fosse carinhoso o tempo inteiro, nem compreensivo com tudo o que ele pensava e nem todos esses clichês.

Não.

Ele queria uma pessoa que tivesse pulso firme, algo que ele admirava nas pessoas, porque ele desistia muito, muito facilmente.

Ele também queria um alguém que o entendesse, sim, mas quando ele estivesse certo. Não com um tipo de verdade que muda para cada cabeça, não. Quando ele estivesse verdadeiramente certo, porque todo o mundo mente, inclusive para si mesmo.

Ele não se importava com a aparência, ele também não procurava alguém para namorar. Ele só queria alguém para estar com ele.

Ele queria, em seu íntimo, alguém para lhe fazer companhia, sabe? Como comer bolo com cobertura de chocolate e tomar café meio-amargo sob o céu azul-royal, conversando sobre aquele novo jogo de videogame que ambos haviam zerado.

Ele queria alguém para desejar boa noite porque ele não fazia isso. E ele também queria uma pessoa para abraçar quando fosse se despedir. Aliás, ele queria alguém para abraçar quase toda hora.

Mas ele não queria um abraço demorado, muito menos um cheio de sentimentos. Esses deveriam ser guardados para quando ele realmente necessitasse porque assim eles não perderiam o valor, o enorme valor que tinham.

James continuou andando,  enxergando parcialmente o caminho; a neblina ainda cobria sua visão, mas agora ele conseguia enxergar as casas nas ruas mais altas às quais ele não pertencia.

Seus pés o guiavam retamente, como se houvesse uma linha imaginária a ser traçada, mas sua mente não estava lá, naquela rua, deixando junto de si o parquinho, não.

Jimmy estava aéreo, seus pensamentos de amigos a amigos, de situações a situações, de lembranças a lembranças… Sua mente voava alto e ele nem ao menos sabia agora para onde ele estava indo.

Mas ele sabia sobre o que pensava. Ele pensava se algum dia fosse encontrar alguém assim, que se encaixasse na descrição de pessoa certa para ele, mas também pensava, em um curto espaço de tempo, se ele já conhecera essa pessoa.

“Não,” pensou enquanto inspirava uma grande quantidade de ar, “eu com certeza não a conheci,” concluiu.
Nesse devaneio, se perguntou com quem ele realmente se importava e James poderia dizer vários nomes, claro, mas apenas porque estava acostumado com eles.

Jimmy sempre se perguntava inúmeras vezes por dia se ele não amava as pessoas apenas porque estava acostumado com elas. E perceber isso não chegava a doer, mas James pensava se era suposto que doesse, no entanto ele não saberia nunca, porque quando ele pensava, ele só sentia indiferença.

Envergonhado com sua apatia, ele parava de pensar. Ele parava de tentar imaginar o que aconteceria se ele pudesse morrer por uma semana, ele parava de pensar em se tornar uma pessoa melhor e continuava naquela vida ordinária.

Ele também parava de pensar sobre o futuro porque ele se via sozinho e sem saída, humilhante.

Ele não pensava, ele só deixava sua cabeça formular coisas que ele não queria pensar, mas era inevitável. Ele não enchia sua cabeça de pensamentos confusos, sem começo e nem fim, apenas o meio, coisas caóticas e que não o levavam a lugar nenhum.

Mas ele sabia que levava, não um caminho propriamente dito, mas o era. Um abismo, talvez, algum lugar escuro, e tão longo e longe, e arriscado que James pensava que uma vez que entrasse, ele não conseguiria sair.

Mas se ele estivesse pensando no momento, perceberia que no ponto em que estava, ele já não conseguiria voltar.

Jimmy estancou os passos e olhou para trás, a neblina diminuíra um pouco e ele conseguia ver o balanço onde na infância se balançara por horas e mais horas até que quando fosse dormir, ele ainda tivesse aquela sensação de estar voando bem alto. Ele também conseguia ver o escorrega e a gangorra; este era o brinquedo preferido dele, embora tivesse sempre que dividir o mesmo lado com alguém porque os garotos com quem ele brincava eram sempre maiores que ele.

Dando meia volta, ele se encaminhou em direção ao parquinho, indo direto para o balanço enquanto enfiava as mãos nos bolsos do casaco.

James gostaria de voltar para aquela época, onde tudo para ele era feliz. Ele não sentia vergonha de si mesmo quase todo o tempo, quase todos os dias, muito menos quando se lembrava de coisas que fizera na infância.

Ele não era de todo feliz, mas ele se lembrava de não se sentir triste; entretanto se ele fosse sincero consigo próprio, ele saberia dizer que desde aquela época ele implorava a Deus – porque quando pequeno ele ainda acreditava em tal santa imagem – que encontrasse um amigo para ele ficar todo o tempo do mundo ao seu lado.

James sorriu, ele se lembrava disso, não poderia se esquecer das tardes, sentado na janela, falando com Deus, achando que ele o escutaria, implorando, rezando, pedindo com tanta fé que ele dormiria naquelas noites com a cabeça limpa e o corpo leve, achando que no dia seguinte ele encontraria alguém para passar os dias, acompanhado.

Jimmy sentou-se no balanço do meio e seus pés moveram-se pela terra gasta e deu um fraco impulso, encolhendo bem as pernas. Suas pernas haviam crescido demais desde a última vez que sentara ali.

Agarrando firmemente a corrente de ambos os lados, James olhou para cima, as casas tampando o céu de um jeito bonito, as nuvens parecendo se juntar à neblina que era fraca agora, o sol brilhando forte, mas não tão forte a ponto de esquentar o corpo do rapaz que agora quase tremia de frio, seus dentes rangendo, as juntas das mãos doendo, os dedos parecendo mais finos e longos e pálidos.

O cabelo úmido colava-se ao rosto encovado dele, gotinhas quase invisíveis, transparentes, parecendo cristais, formavam quase um manto sobre seus fios negros e desgrenhados.

Ocorreu a James que pedindo “por favor” alguém iria escutá-lo porque mesmo com carência de respostas e abundância de dúvidas, ele não conseguia acreditar que não houvesse mesmo alguém que regesse o universo.

Então, respirando fundo, fechando os olhos, apertando mais e mais a corrente entre os dedos, James expirou todo o ar em seus pulmões e com a voz baixa, um fio de voz, pediu: “Por favor” e esperou por alguns segundos, então abriu os olhos, talvez achando que alguém fosse aparecer na rua, talvez para ver se algo havia mudado.

Mas tudo continuava o mesmo.

Só ele, a neblina e o parquinho.


sábado, 30 de junho de 2012

Villainy


The beauty in villains is that they know they're totally fucked up. They realize it and come to accept that that is the way they are. They don't fight their flaws. They embrace them and become stronger, for they know there's no point in fighting against their own nature.