quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Perdas

A gente é assim: chora, soluça, esperneia, quebra, pragueja, xinga, sente odiosidade, mas depois só resta aquela quietação das emoções fortes, deixando o rastro de tristeza em todo o corpo, em toda a mobília, em todo o mundo.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Polos

Havia algo no sorriso dele.

Seu olhar era sempre distante, opaco, melancólico. Desviava fácil dos olhos de algumas pessoas e se perdia na parede, ou na costura do ombro alheio, na nuvem que estivesse perpassando o céu, ou nos detalhes do piso, do asfalto. Era desses que gostava de observar tudo.

Seu sorriso era triste. Era verdadeiro; ele não sorria por educação, embora fosse um rapaz extremamente educado. Do tipo que não pensa duas vezes antes de dizer “Me desculpe” ou pedir “Com licença”. Suas frases sempre seguidas de “por favor” e um “obrigado”.

Mas era triste. Escondia uma tristeza que nem todos conheciam ou conheceriam. Todo um mundo era escondido por trás daquele sorriso que, mesmo sincero, não chegava aos olhos. Toda uma vida, todo um mistério, um sofrimento, um labirinto.

Seus olhos eram grandes e levemente caídos no canto externo. Eram doces, mas afiados. Eram bonitos, eram sinceros, eram perfeitos para a pessoa que ele era.

Quando perturbado, colocava uma mecha – geralmente do lado esquerdo, era canhoto – para trás da orelha. E era isso o que ele fazia agora. Ele não dizia nada enquanto eu dizia tudo. Tudo o que viesse em mente. Tudo o que estivesse me incomodando, tudo o que eu achava que o incomodava. Mas ele continuava calado.

Às vezes ele falava, xingava, gritava, quebrava coisas, colocava tudo para fora. Sua língua era tão ferina quanto unhas de gatos. Suas palavras machucavam e formavam cicatrizes que demorariam a cicatrizar. Então brigávamos e ficávamos dias sem falar. Mas ele era sempre o cavalheiro educado, charmoso, consciente de seus – e meus – defeitos e vinha com aquela conversa mansa, cheia de entendimentos que terminava na cama.

No final, ele me fazia perceber que era a pessoa mais especial que existia. Sabia conversar sobre tudo. Música, literatura, pintura... Artes em geral. Ele dizia que sem a Arte, não haveria humanidade, não haveria mundo. Não haveria sequer vida.

Mas geralmente ele só se martirizava, escutando calado, tentando não jogar na minha cara o que sabia que me machucaria. Daí eu tentei ser uma melhor versão de mim mesmo, para ele. Tentava decifrar suas expressões, seus silêncios e acho que no fim, eu me perdi em seu labirinto.

Em algum ponto, começamos a ser o que não éramos. Nos amávamos tanto que esse amor acabou por nos afastar um do outro. Era como um de seus romances. Enveredados para a tragédia, embaralhados com uma mistura de esperança, mas no fim, sem já sabermos disso, ela desapareceria como o sol ao chegar da noite.

Ele sempre gostou da liberdade, da sinceridade, da honestidade e eu o estava prendendo a algo que ia de encontro aos ideais dele. Eu estava ancorando o nosso romance a algo que talvez não devesse mais existir.

Eu o amei tanto que eu me tornei cego a ponto de achar que ele não perceberia o que eu estava fazendo. Logo ele, o cara mais inteligente que já conheci. O que sempre sacava as tiradas sarcásticas, a ironia que ninguém percebia.

Mas ele percebeu. Percebeu que eu não era mais o mesmo, que só estava tentando ser uma versão melhorada de mim mesmo. E então ele se chateou, ficou triste. Quase não sorria mais. Ele era desses. Entristecia-se, não saía da cama para mais nada. Lutava para comer, se levantar, viver.

Ele queria que eu o surpreendesse a cada dia, que eu fosse nada mais, nada menos do que eu mesmo. Que eu o fizesse chorar e então o fizesse sorrir. Queria que eu continuasse fazendo-o me odiar durante as discussões, mas que o fizesse me amar logo depois daquela transa, onde nossos corpos suados estivessem tão cansados para se mover que acabariam dormindo agarrados um ao outro.

Era tanto amor, tanta ironia. Eu sabia – nós sabíamos – que aquilo se tornaria mais um de seus contos. No final, nosso romance seria eternizado em mais um de seus textos que seria lido, relido, criticado, aclamado.

Viriam perguntas. “Por quê, por que eles terminaram?”, “Por que sempre tão sem esperança?”, “Por que não um final feliz?”. Ele soltaria uma curta risada sarcástica, e faria alguma crítica sobre sempre necessitarmos de um romance perfeito e com um final admirável para continuarmos vivendo em meio a sarjeta.

Sua voz é calma e triste, quando resolve falar: – “Eu amo você” – Eu sei que me ama. E eu sei que mesmo depois disso continuaremos a nos amar. Ele me encara nos olhos.  Como sempre faz com as pessoas pelas quais sente interesse. Olha da cabeça aos pés, observa, parece ler a mente, os pensamentos e então você se sente despido diante dele. Não é difícil encontrar alguém que se sinta intimidado pela sua postura, seu olhar, embora ele seja a pessoa mais doce – e ferina – que eu já conheci.

Eu sei, mon amour. Eu também o amo. E sei que você também sabe disso. Sei que errei, mas sei que você entende o meu erro e me perdoa por ele. Você é tão bom em desvendar meus pensamentos quanto eu aprendi a ser bom em desvendar os seus.

“Mas” – digo o que ele não consegue dizer – “isso não é o suficiente.” – ele continua me encarando. Porque ele é desses; não abaixa a cabeça, enfrenta seus medos de frente. – “Me desculpe” – eu peço, avançando um, dois passos à frente e abraçando-o com força – “eu sinto tanto.”

“Não é só sua culpa, é nossa culpa.” – ele responde; sua voz é grave, rouca, gutural. Me arrepia quando sussurrada.

“Eu amo você, Caio.” – digo bem baixo, perto do ouvido dele. Aquilo parece ser efêmero demais para eu falar longe dele. Esse momento deve ser só nosso pela uma última vez.

“Eu sei,” – sussurra de volta e eu sinto aquele frio percorrer minha espinha – “e eu também te amo.”