sábado, 31 de março de 2012

Déjà vu


“Como você conseguiu esse corte?” – o médico faz pressão no meu pulso para que eu o encare.

Olho para ele. Olhos escuros e sobrancelhas finas. – “Eu caí – acho que desmaiei” – o ar condicionado do hospital me faz tremer; olho para minha mão e ela está úmida e de um branco amarelado com as unhas arroxeadas. Minha roupa toda está encharcada.

“O corte é reto demais. Parece com um corte infligido” – sinto uma tontura quando vagamente o encaro. Fecho meus olhos, sinto náuseas agora. – “Vertigem?” – ele me pergunta antes de eu vomitar em seu jaleco.

Sempre tive estômago fraco. – “Desculpe” – peço ainda de olhos fechados, sentindo minha cabeça rodar enquanto ouço alguém dizer que eu havia perdido muito sangue.

Eu não consigo lembrar como vim parar aqui, só consigo me lembrar do dia seco, da sensação de estar sujo o dia inteiro, a ardência no nariz enquanto este sangrava por causa do calor.

Alguém me faz deitar na maca e eu encaro o teto branco por alguns segundos, tentando fazer a tontura e a ardência no estômago passarem. Desisto e volto a fechar os olhos.

Lembro-me do céu azul-cobalto, do crepúsculo colorindo o horizonte de vermelho-sangue, roxo. Da falta de vento, do calor. Da grama bem verde iluminada por um poste cuja lâmpada de luz fraca piscava em intervalos de minutos.

Também faz parte do cenário inúmeras sepulturas, centenas delas. Todas organizadas em fileiras e colunas. O cemitério estava quase deserto àquela hora, havia algumas pessoas ao longe, alguns coveiros e eu.

Podia ver os buquês serem colocados em cada cova. Se eu prendesse a respiração e me concentrasse por alguns segundos, conseguiria ouvir o murmúrio do choro de uma moça. O sussurro dos dois caras atrás dela, dizendo que eles deveriam ir embora. Talvez primos ou irmãos.

Tudo parecia ser um filme em minha cabeça. Eu não sentia nada, era só um vazio dentro de mim. Era como se alguém tivesse me desligado da tomada e eu só conseguisse presenciar, estar lá. E só.

Lembro-me de ter agachado… – não. De ter caído como se tivesse perdido minha força… – não. Lembro-me de ter caído... pelo cansaço de uma vida inteira carregada nas costas. Sem sensações, sem sentimentos, sem prazer. Isso. Eu caíra porque era como se eu não pudesse mais aguentar toda aquela fraqueza, toda aquela angústia.

Apoiara minhas mãos sobre a sepultura, sem ar e fora nesse momento que eu vira o nome que estava gravado nela. Joseph, Jeremy, Johnny…  nunca conseguia gravar nomes. Mas era de um homem que lutara na Segunda Guerra antes de morrer. Talvez um alemão refugiado.

O que mais me recordo é da diferença entre meus joelhos sobre a grama macia e minhas mãos sobre a sepultura áspera.

Jaz aqui eternamente” – me recordo de ter lido e gravado – “um homem cuja diferença foi almejada.” – as letras eram pequenas e desgastadas, cobertas por poeira. – “Um exemplo a ser seguido para quem persevera em provir o seu melhor.

Uma pontada forte na minha cabeça me faz comprimir os olhos com força antes de abri-los abruptamente.

“Minha” – percebo a dificuldade em formar palavras, minha língua parece inchada – “cabeça...”

“Você bateu com a cabeça em algum lugar?” – fecho meus olhos com força, a voz dele parece perfurar minha têmpora.

“Não sei” – rezo para que ele consiga entender o que eu disse.

“Vou administrar um analgésico.”

Respiro fundo, sentindo uma sonolência ao mesmo tempo em que a dor vai se tornando fraca. Consigo ouvir o timbre calmo do médico me dizendo que eu sentirei um pouco de sono, mas que é normal por causa do remédio.

Esforço minha memória e consigo me lembrar da primeira brisa que eu senti essa noite. Lembro-me de ter ouvido um trovão, mas sabia que não iria chover tão cedo; sei que não pensei duas vezes antes de me abaixar e pegar o pequeno retrato dentro de uma moldura e batê-lo contra a lápide.

O vidro que protegia a foto se espatifou em minhas mãos. Olhei ao redor, mas ninguém pareceu perceber o que eu acabara de fazer. – “Desculpa” – murmurei para o túmulo antes de buscar pelo pedaço mais afiado, esperava por um que pudesse me tirar dali.

“Você vai ficar aqui esta noite” – ouço a voz do médico bem de longe; abro os olhos e percebo como eles estão pesados e como o ambiente está se desfazendo em misturas de cores e manchas.

Lembro-me de ter encarado meus pulsos por um longo tempo antes de erguer o pedaço de vidro estilhaçado.
A ardência, o sangue escorrendo, o palpitar no músculo, a pequena parcela de loucura correndo por minhas veias e indo se esparramar nos meus joelhos… sinais de que ainda havia vida em mim.

A última coisa que eu me lembro de sentir era essa vertigem que eu sinto agora, que parecia querer arrancar meu cérebro fora. Lembro-me de tentar erguer meu braço tal como tento agora... é inútil: não consigo. Também não conseguira outrora.

Forço-me a abrir os olhos novamente, mais pesados que nunca, sinto vontade de coçá-los de tanto que ardem, mas meus braços não obedecem mais aos meus comandos. Encaro a fonte de luz mais próxima de mim, tal como encarei o poste que havia no cemitério. Procuro pelo médico, mas não vejo ninguém, só leitos. Volto minha atenção à lâmpada.

Tudo parece tão igual, é como se fosse um déjà vu. Aquela redoma brilhante machuca meus olhos de pupilas dilatadas, decido parar de lutar contra a dor densa atrás dos meus olhos e permito minhas pálpebras descansarem, me entregando àquela sensação que sentira antes, quando achara que tudo estava acabado.

  • 02/01/2011


domingo, 4 de março de 2012

Entre Ondas

A onda molhou meus pés e a sensação fria correu pela minha coluna, me arrepiando. Ergui meu braço e vi os pelos claros arrepiados.

“É lindo, não é?” – ele perguntou e eu o encarei por alguns poucos segundos, necessários para eu entender que ele se referia ao mar à nossa frente.
Era imenso e estava tão calmo lá, bem no fundo, onde o oceano se juntava com o céu branco, cheio de nuvens cinza e uma neblina rasa mais abaixo.

Sim, era lindo, mas não houve necessidade de respostas, nunca houve.

Estávamos calados há bastante tempo, só olhando e admirando, recebendo as ondas fracas que se chocavam contra os nossos pés descalços, nos desequilibrando de leve enquanto a areia vinha e voltava arrastada pelas ondas espumosas.

Senti a necessidade de falar algo. Qualquer coisa que cessasse aquela ansiedade, aquele nervosismo. Acabar com aquele silêncio calmo como o som das ondas ou tranquilo como o céu branco neve, mas eu não tinha o que falar.

Parecia-me, também, que quando eu fosse falar eu teria que pigarrear para continuar. Não me importei e disse a primeira coisa que me veio à cabeça:

“No que” – limpei a garganta – “No que você está pensando?” – perguntei.

Ele franziu as sobrancelhas no mesmo momento em que se virou para mim. Seus olhos castanhos com íris maiores que o normal mostravam confusão enquanto ele inclinava a cabeça de leve.

Ele era adorável.

“Não agora, naquela hora” – expliquei, voltando a olhar o oceano. Mas logo voltei a encará-lo. Ele era bem mais alto que eu e para olhá-lo nos olhos eu precisava inclinar ligeiramente a cabeça para cima. 
Me perguntava, afinal, se ele reparava que meus olhos ficavam mais claros assim, com toda a luz daquele enorme céu sobre eles. – “Sempre pensamos em algo enquanto observamos uma paisagem bonita…”

Ele suspirou e eu esperei. – “Primeiro eu pensei em História” – ele soltou uma risadinha pelo nariz e eu continuei esperando. – “Quando as pessoas pensavam que a Terra era quadrada, mas depois eu pensei se havia alguém na mesma situação que a minha, se perguntando a mesma coisa.”

“Se perguntando se” – hesitei – “existem alguém na mesma—”

“Não” – ele me interrompeu. – “Se no final estamos sempre sozinhos. Se um dia eu encontro alguém em quem eu consiga confiar...” – explicou, suspirando de leve enquanto fitava seus pés – “se perguntando tudo isso na beira da praia, sozinho com seus pensamentos.”

Ele era adorável, repeti para mim.

“Você encontra” – disse – “você encontra sim.” – repeti como se isso fosse dar mais verossimilhança à frase.

“Às vezes, acho que sim, e, às vezes, acho que não” – ele murmurou como se estivesse me contando um segredo. Sua voz baixa enquanto uma ave piava ao longe, talvez uma gaivota. – “É muito complicado essas coisas…” – sua voz ficou mais baixa, quase mais baixa que o som das ondas – “Meus avôs estão juntos até hoje” – disse e por um momento seu olhar desenhou uma rota até o fim do oceano, onde ele se encontrava com o céu e parecia que caso seguisse reto, ele chegaria lá, onde ninguém alcança, onde todos sonharam em estar quando inocentes. – “Mas meus pais não” – concluiu e seu olhar se perdeu, como se o lugar onde ele estivesse prestes a chegar desmoronasse à sua frente. 

“É complicado...” – respondi, tentando ajudá-lo em suas questões escondidas em lugares profundos dentro dele. – “Mas… pode parecer besteira, mas, às vezes, eu sinto demais” – murmurei baixinho, meio com vergonha de confessar esse tipo de sentimento que eu tenho. – “E na maioria das vezes que eu estou com você, eu sinto que você vai ser feliz” – ele sorriu timidamente, uma mistura de emoção e embaraço. – “Você é o tipo de pessoa que merece isso.”

Ele me olhou e eu o olhei, e por mais que ele fosse maior que eu, eu o sentia tão pequeno, e choroso, e inocente. E ele desviou o olhar, ainda sorrindo de leve, talvez feliz por estar esperançoso, otimista. Nem que fosse apenas por um curto momento.

Voltei a encarar aquele ponto bem distante que parecia inalcançável para quem observa da beira da praia, mas ele me chamou a atenção.

“Oi?”

“E no que você estava pensando?”

Respirei fundo. Abri a boca, mas voltei a fechá-la quando novamente uma gaivota piou ao longe. As ondas ficando cada vez maiores e mais fortes na mesma proporção que o vento pegava mais velocidade.

“Eu me perguntava o que você sentia” – encarei-o de volta. Se os olhos dele fossem castanho-esverdeados, eles estariam verdes agora. – “Eu não quero que você se sinta mal, nem quero que você sofra.”

Ele voltou a fitar seus pés e eu os olhei por curiosidade. Uma água-viva flutuava perto deles e ele se abaixou para pegá-la daquele jeito certo que não queimava a palma da mão. – “Noventa e oito porcento de água, hum?” – ergueu os olhos e me encarou e eu fiz o mesmo e o encarei. – “É como se” – ele hesitou, meio em dúvida no que falar – “elas fossem o seu próprio habitat” – semicerrei os olhos, não entendendo o que ele queria dizer. – “Como alguém poderia se sentir sozinho assim? Vazio? Como se não pertencesse ao lugar ao qual vive?” – ele me perguntou e eu sacudi a cabeça de leve. – “Como alguém não poderia?” – ele soltou uma risada amarga e se agachou, sentando-se na beira da praia no exato momento em que uma onda chocava-se contra meus pés e as tíbias dele.

Olhei para ele em confusão e ele deu dois tapinhas na areia ao lado dele. Olhei para as ondas que voltavam, para o ponto inalcançável e para o céu –  que parecia se acabar exatamente naquele ponto apenas para se transformar em água – sendo riscado por duas gaivotas voando em círculos.

Por que não? Me sentei.

“Isso é um saco…” – ele murmurou, ainda com a água-viva na mão.

“Eu sei” – concordei meio reticente. – “Sabe…” – disse, mas me calei. Eu sentia frio agora que da cintura para baixo, tudo meu estava molhado.

“O quê?” – ele disse, despejando a medusa na água.

“Conheci alguém” – disse de volta e ele me olhou estranho. – “Eu acho que estou gostando de alguém” – expliquei.

Ele me olhou surpreso, virando-se de frente para mim. – “Quem?”

“Eu não sei o nome dele” – murmurei. – “Na verdade, ele não deve nem notar a minha existência...” – olhei para ele e novamente ele me olhou estranho, confuso. – “Eu só o observo” – suspirei.

“Então como você pode dizer que está gostando dele?” – sua voz soou alta demais para meus ouvidos, era como se ele estivesse gritando que eu era superficial.

“É algo na voz dele, na calma que ele aparenta ter” – comentei, estranhando somente agora eu estar gostando de alguém que fosse calmo – se é que ele fosse isso. – “E quando ele olha para mim” – sorri amargamente, desviando meu olhar, repousando a lateral do meu rosto em meus braços cruzados sobre os joelhos – “eu sinto que ele sabe que me conhece de algum lugar. Sabe… desconhecidos íntimos?” – perguntei, olhando para ele. – “Talvez se eu o conhecesse melhor, eu não gostasse dele, ou não sentisse tudo o que eu sinto quando eu o vejo agora... talvez tudo isso acontecesse, mas talvez não, e é por isso que eu prefiro não me arriscar. Eu prefiro ficar aqui, de longe, observando-o e sentindo todas essas coisas. Todas essas coisas que eu sempre quis sentir” – murmurei, fechando os olhos enquanto a imagem dele me vinha em mente como nas tantas outras vezes que eu me forcei a imaginá-lo. – “O jeito como as coisas que eu acho feias ficam bonitas nele quase me assusta, às vezes.” – disse mais para mim do que para ele, quase um sussurro de voz rouca. – “Você me acha idiota por isso?” – perguntei, abrindo meus olhos e encarando-o. Ele tinha uma expressão tão triste e piedosa que me fez sentir insegura e pequena.

“Não” – ele disse – “tudo bem em fugir, às vezes.” – e ele se aproximou de mim, passando seus braços sobre os meus ombros e me puxando mais para perto. Deitei minha cabeça na curva entre seu ombro e pescoço e suspirei, abraçando-o de volta.



  • 10/09/2010