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terça-feira, 9 de outubro de 2012

Jimmy

James olhou ao redor e continuou não vendo nada.

O balanço se movimentando ao toque do vento, a gangorra estática, o escorrega desgastado pelo tempo, com a terra já gasta no fim da rampa, o gramado verde e úmido por causa do orvalho, com gotículas que refletiam a luz do sol, o céu azul com nuvens branca, as crianças brincando, as árvores bonitas e grandes… nada, ele não conseguia ver nada, apenas aquela neblina espessa e esbranquiçada fazia seu mundo naquele momento.

Isso e o leve rangido que o balanço fazia.

Ele sentia frio, só usava um agasalho tão gasto que já umedecera com a névoa densa, e um jeans rasgado.
James olhou ao redor e semicerrou os olhos, tentando enxergar algo que não conseguia. Ele não apenas queria ter a visão do parquinho, aquele onde ele passara a infância brincando em sua plena inocência, ele queria respostas.

Ele não sabia o que pensar, então não pensava. Mas não era exatamente assim que as coisas funcionavam; James em seu veto ao pensamento não tentava entender o que era para ser entendido, só aceitava o que sua cabeça formulava cruamente.

Não era boa coisa, porque nada bom saía de sua mente. Eram pensamentos ruins, melancólicos, misantropos e James só se recolhia mais e mais em seu próprio mundo.

Se ele pudesse dizer algo que gostaria de ter, seria uma pessoa. Ele adoraria ter um alguém para ouvi-lo e dar a ele as respostas que necessitava.

Ele não poderia dizer que não tinha aquilo, mas na maioria das vezes, ele achava que só necessitava de um abraço; longo, apertado e com carinho na nuca junto com palavras doces, que o tocasse como uma brisa de Outono.

“Um dia, tudo vai ficar bem.”, “Não se preocupe, eu estou aqui.”, “Você pode contar comigo.”… palavras assim. Mornas e macias.

Tão mornas e tão macias que tinham quase a mesma intensidade de um edredom e uma cama quentinha em uma tarde escura de inverno.

Jimmy arrastou a mão pela calçada em que estava sentado, sentiu a umidade na palma da mão – que já sentia em suas calças – e a levou ao joelho, secando-a com displicência.

Respirando fundo, querendo inspirar todo o ar ao seu redor, encher os pulmões de oxigênio até que se sentisse satisfeito, James se levantou com certa dificuldade, suas panturrilhas doendo, junto com seus joelhos e o incômodo do jeans molhado.

Por um momento, um curto momento no qual o rapaz aproveitou para se alongar – esticando os braços bem acima da cabeça – e começar a caminhar sem rumo pela rua estreita feita de paralelepípedos – que em certo ponto começava a ser asfaltada -, Jimmy se perguntou se algum dia ele encontraria o tipo certo de pessoa para ele.

Ele não pedia nenhum estereótipo; ele não queria alguém que fosse carinhoso o tempo inteiro, nem compreensivo com tudo o que ele pensava e nem todos esses clichês.

Não.

Ele queria uma pessoa que tivesse pulso firme, algo que ele admirava nas pessoas, porque ele desistia muito, muito facilmente.

Ele também queria um alguém que o entendesse, sim, mas quando ele estivesse certo. Não com um tipo de verdade que muda para cada cabeça, não. Quando ele estivesse verdadeiramente certo, porque todo o mundo mente, inclusive para si mesmo.

Ele não se importava com a aparência, ele também não procurava alguém para namorar. Ele só queria alguém para estar com ele.

Ele queria, em seu íntimo, alguém para lhe fazer companhia, sabe? Como comer bolo com cobertura de chocolate e tomar café meio-amargo sob o céu azul-royal, conversando sobre aquele novo jogo de videogame que ambos haviam zerado.

Ele queria alguém para desejar boa noite porque ele não fazia isso. E ele também queria uma pessoa para abraçar quando fosse se despedir. Aliás, ele queria alguém para abraçar quase toda hora.

Mas ele não queria um abraço demorado, muito menos um cheio de sentimentos. Esses deveriam ser guardados para quando ele realmente necessitasse porque assim eles não perderiam o valor, o enorme valor que tinham.

James continuou andando,  enxergando parcialmente o caminho; a neblina ainda cobria sua visão, mas agora ele conseguia enxergar as casas nas ruas mais altas às quais ele não pertencia.

Seus pés o guiavam retamente, como se houvesse uma linha imaginária a ser traçada, mas sua mente não estava lá, naquela rua, deixando junto de si o parquinho, não.

Jimmy estava aéreo, seus pensamentos de amigos a amigos, de situações a situações, de lembranças a lembranças… Sua mente voava alto e ele nem ao menos sabia agora para onde ele estava indo.

Mas ele sabia sobre o que pensava. Ele pensava se algum dia fosse encontrar alguém assim, que se encaixasse na descrição de pessoa certa para ele, mas também pensava, em um curto espaço de tempo, se ele já conhecera essa pessoa.

“Não,” pensou enquanto inspirava uma grande quantidade de ar, “eu com certeza não a conheci,” concluiu.
Nesse devaneio, se perguntou com quem ele realmente se importava e James poderia dizer vários nomes, claro, mas apenas porque estava acostumado com eles.

Jimmy sempre se perguntava inúmeras vezes por dia se ele não amava as pessoas apenas porque estava acostumado com elas. E perceber isso não chegava a doer, mas James pensava se era suposto que doesse, no entanto ele não saberia nunca, porque quando ele pensava, ele só sentia indiferença.

Envergonhado com sua apatia, ele parava de pensar. Ele parava de tentar imaginar o que aconteceria se ele pudesse morrer por uma semana, ele parava de pensar em se tornar uma pessoa melhor e continuava naquela vida ordinária.

Ele também parava de pensar sobre o futuro porque ele se via sozinho e sem saída, humilhante.

Ele não pensava, ele só deixava sua cabeça formular coisas que ele não queria pensar, mas era inevitável. Ele não enchia sua cabeça de pensamentos confusos, sem começo e nem fim, apenas o meio, coisas caóticas e que não o levavam a lugar nenhum.

Mas ele sabia que levava, não um caminho propriamente dito, mas o era. Um abismo, talvez, algum lugar escuro, e tão longo e longe, e arriscado que James pensava que uma vez que entrasse, ele não conseguiria sair.

Mas se ele estivesse pensando no momento, perceberia que no ponto em que estava, ele já não conseguiria voltar.

Jimmy estancou os passos e olhou para trás, a neblina diminuíra um pouco e ele conseguia ver o balanço onde na infância se balançara por horas e mais horas até que quando fosse dormir, ele ainda tivesse aquela sensação de estar voando bem alto. Ele também conseguia ver o escorrega e a gangorra; este era o brinquedo preferido dele, embora tivesse sempre que dividir o mesmo lado com alguém porque os garotos com quem ele brincava eram sempre maiores que ele.

Dando meia volta, ele se encaminhou em direção ao parquinho, indo direto para o balanço enquanto enfiava as mãos nos bolsos do casaco.

James gostaria de voltar para aquela época, onde tudo para ele era feliz. Ele não sentia vergonha de si mesmo quase todo o tempo, quase todos os dias, muito menos quando se lembrava de coisas que fizera na infância.

Ele não era de todo feliz, mas ele se lembrava de não se sentir triste; entretanto se ele fosse sincero consigo próprio, ele saberia dizer que desde aquela época ele implorava a Deus – porque quando pequeno ele ainda acreditava em tal santa imagem – que encontrasse um amigo para ele ficar todo o tempo do mundo ao seu lado.

James sorriu, ele se lembrava disso, não poderia se esquecer das tardes, sentado na janela, falando com Deus, achando que ele o escutaria, implorando, rezando, pedindo com tanta fé que ele dormiria naquelas noites com a cabeça limpa e o corpo leve, achando que no dia seguinte ele encontraria alguém para passar os dias, acompanhado.

Jimmy sentou-se no balanço do meio e seus pés moveram-se pela terra gasta e deu um fraco impulso, encolhendo bem as pernas. Suas pernas haviam crescido demais desde a última vez que sentara ali.

Agarrando firmemente a corrente de ambos os lados, James olhou para cima, as casas tampando o céu de um jeito bonito, as nuvens parecendo se juntar à neblina que era fraca agora, o sol brilhando forte, mas não tão forte a ponto de esquentar o corpo do rapaz que agora quase tremia de frio, seus dentes rangendo, as juntas das mãos doendo, os dedos parecendo mais finos e longos e pálidos.

O cabelo úmido colava-se ao rosto encovado dele, gotinhas quase invisíveis, transparentes, parecendo cristais, formavam quase um manto sobre seus fios negros e desgrenhados.

Ocorreu a James que pedindo “por favor” alguém iria escutá-lo porque mesmo com carência de respostas e abundância de dúvidas, ele não conseguia acreditar que não houvesse mesmo alguém que regesse o universo.

Então, respirando fundo, fechando os olhos, apertando mais e mais a corrente entre os dedos, James expirou todo o ar em seus pulmões e com a voz baixa, um fio de voz, pediu: “Por favor” e esperou por alguns segundos, então abriu os olhos, talvez achando que alguém fosse aparecer na rua, talvez para ver se algo havia mudado.

Mas tudo continuava o mesmo.

Só ele, a neblina e o parquinho.


segunda-feira, 23 de abril de 2012

Yin Yang


Depois da tempestade vem a bonança. Sabe o que isso quer dizer? É aquela tranquilidade de espírito que muitos almejam. Que nós almejamos. Nunca entendi muito bem esse ditado. Tá, e daí que depois da tempestade vem a bonança? Já enfrentei tantas tempestades no meu pequeno barquinho frágil, quebradiço, novo, mas com aparência de cem anos. Tantas tempestades que não saberia computar. Tantas que levaram tudo o que eu tinha, que acabei achando que não conseguiria trazer de volta o que havia perdido, e, às vezes, penso que nunca conseguirei. Mas com o tempo – a única constante no mundo todo – percebi que não importa o quanto perdemos de nós mesmos, porque um dia simplesmente lidamos com a falta desses pedacinhos. Um dia a gente percebe que, bem, foda-se, fazer o quê? A vida é assim, é uma merda, é inconstante. Esperar que mantivéssemos aquela inocência de criança para a vida toda é, simplesmente, ingênuo demais. Mas e depois? E a bonança? Nunca entendi esse provérbio porque nunca conheci a bonança. Para mim, essa calmaria que vinha depois das tempestades era constante. A meu ver, no desfecho tudo daria certo. Quão inocente de mim. Porque afinal, o provérbio definitivo deveria ser “Depois da tempestade vem a bonança. E vice-versa”, mas quem gostaria de ouvir isso? A vida é cheia de pessoas que pensam de modo otimista, e qual delas gostaria de saber que, no fim das contas, a bonança não é o que persevera?  No entanto, com quase duas décadas de invernos vivenciados, a gente adquire uma mentalidade diferente daquela que a gente tinha há muito ou há pouco tempo. É bem como os sábios chineses filosofaram: a vida é composta de forças negativas e positivas, o Yin e o Yang. Ambas as energias estão presentes na vida de qualquer pessoa, pois elas são complementares. A luz não pode existir sem escuridão, tampouco o inverso. Basicamente, elas são opostas, mas não se opõem. Em sua natureza, elas buscam o equilíbrio no fluxo constante do universo. E é assim que eu me sinto agora. Não importa se sou Yin ou se sou Yang, o fato é que sempre serei o que sou independente do que eu faça, mas sempre terei em mim uma semente da energia oposta. Não importa quantas tempestades virão, quantos milhares de vezes terei que reconstruir meu pequeno barquinho cansado, sempre haverá uma bonança dentro de mim esperando o momento certo para despertar e se espalhar, equilibrar-se.

domingo, 15 de maio de 2011

Sobre se Perder e Esconder

A gente é assim, vai se perdendo nos outros, se perdendo na gente, se perdendo dos outros, se perdendo da gente até que percebe que está na hora de se encontrar. Encontrar em algo, em alguém. Em algum cheiro, em algum lugar, em algum livro, em algum amigo.

A gente vai se perdendo no alheio, esquecendo-se das vontades não nossas, mas dele, esquecendo que as pessoas são uma alma presa em um labirinto, por vezes, intocável.

Vai seguindo em frente, buscando, escavando, procurando por aquilo que deseja das outras pessoas. Aquela intimidade sutil, aquele sorriso espontâneo, o pedido de desculpas cheio de remorso, aquele “eu quero estar com você” não falado, mas timidamente evidente.

Até que a gente muda de foco sem perceber. Não queremos mais a pessoa como ela é, mas a queremos nos amando, nos entendendo, nos aceitando, respeitando, nos querendo.

Estou me fazendo entender? O que quero dizer é que, às vezes, nós temos o azar – essa necessidade triste – de irmos preocupando-nos com o que a pessoa sente da gente e não com a pessoa em si. A gente ressalta que ela existe como um ser humano que é sujeito à decepção e vai se deixando perder naquele sentimento especial, naquele conforto, nos gestos, nos olhos, nos abraços. Tudo muito cheio de culpa, cheio de segredos que não quer revelar.

A gente vai se tornando tão egoísta, sabe? Só querendo, necessitando, ansiando, desejando. A gente se torna mesquinho e egoísta com a falta de amor. Queremos aquela pessoa só para gente.

Não é estranho? Não é estranho que não liguemos – mesmo que sem querer, sem querer de verdade, assim sem intenção de fazer sofrer – para quem amamos contanto que sejamos amados?

Não é isso o que eu quero dizer. Nos importamos, sim, claro que nos importamos. Mas é que em um ponto do caminho, parece que a gente esquece que aquele ser humano tem vontades, tem uma vida, tem uma história, tem seus segredos, suas dores e, principalmente, um sorriso que esconde tudo isso e tudo aquilo.

Aí percebemos que existe, sim, algo por trás de toda aquela fachada – que afinal, é só mais uma fachada. Algo bem assim como a gente. Algo que sofre, que chora, que grita, que se machuca, que anseia por amor tanto quanto nós mesmos. Algo como nós.

Por isso que é complicado se perder em alguém na busca de tentar achar a pessoa que é. Precisa de cuidado extra, atenção múltipla e muita perseverança. Nem todos são labirintos fáceis; têm uns que têm monstros, pesadelos, esquinas sombrias, armadilhas e tudo o que nem pensamos existir.

Às vezes, só queremos nos perder, mas não estamos dispostos a abrir nossas janelas e deixar alguém entrar. Como pode tanto egoísmo? Como se pode coexistir assim? Mas é aquela sensação de fraqueza, de insegurança, de impotência, de incapacidade. É que o medo nos leva a inventar personalidades odiáveis que nem sabíamos da existência.

Mas a gente aprende – tem sempre alguém que aprende. A gente vai aprendendo a aprender, a perseverar, a esquecer – os traumas, as tristezas, os amores perdidos, as sensações de vazio, de incompetência, o desespero – e vamos conseguindo viver assim, na medida do possível, tentando não afastar pessoas que saibam demais da gente – ou pelo menos um pouquinho mais que todo mundo – nos dando aquela sensação de insegurança, fragilidade, como se nossos defeitos estivessem todos expostos, todos os nossos medos e segredos.

Mas é assim, a gente aprende. Com o tempo, a gente aprende a aprender.

É sempre nisso que eu tento pensar. Fecho os olhos, respiro fundo, medito por um momento e repito para mim em voz alta para evocar a confiança: “Com o tempo, a gente aprende a aprender”, aí repito novamente: “A gente aprende a aprender”. Repito assim, baixo e lentamente para a frase entrar na cabeça. Que assim a frase ecoa em meus pensamentos, e não importa quão pequena seja a quantidade de vezes que ela chegue a ecoar, porque nesses curtos instantes eu realmente consigo acreditar que sim, a gente aprende a aprender.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Limite Branco


"Sinto-me terrivelmente vazio. Há pouco estive chorando, sem saber exatamente por quê. Às vezes, odeio esta vida, estas paredes, essas caminhadas de casa para a aula, da aula para casa, esses diálogos vazios, odeio até este diário, que não existiria se eu não me sentisse tão só. O que eu queria mesmo era um ombro amigo onde pudesse encostar a cabeça, uma mão passando na minha testa, uma outra mão perdida dentro da minha. O que eu queria era alguém que me recolhesse como um menino desorientado numa noite de tempestade, me colocasse numa cama quente e fofa, me desse um chá de laranjeira e me contasse uma história. Uma história longa sobre um menino só e triste que achou, uma vez, durante uma noite de tempestade, alguém que cuidasse dele."

— Limite Branco - Caio Fernando Abreu


terça-feira, 1 de março de 2011

Giovanna

Olhava pela janela da sala a rua suja e cinzenta, alagada. Era um beco estreito entre dois prédios onde das lixeiras emanava um cheiro azedo dia e noite.

A janela, tal como o cortiço, era suja e embaçada. Quase não conseguia distinguir o contorno dos transeuntes do quinto andar onde morava. Sem elevador. O carpete do pequeno cortiço era vermelho, mas tão sujo que havia virado cor de tijolo molhado.

Odiava aquele lugar. Aquela sujeira, a mobília usada, velha, o cheiro de lixo, o calor que subia do chão até seu andar, as escadas ruidosas e o carpete cor de tijolo presente em toda aquela estalagem medíocre.

Às vezes, tirava os óculos – tinha um elevado grau de miopia – e só ficava olhando para o nada, no escuro. Imaginava-se em outro lugar, em outra vida. Imaginava-se fora dali enquanto encarava o teto descascado – o qual não conseguia discernir. London, Tokyo, Paris, Venezia, Dublin, Ontario, Roma, Madrid, Lisboa, Amsterdan... Imaginava-se em todos os lugares, menos ali, naquela ruela de São Paulo. Numa cidade onde chuva, calor e cinza se misturavam durante o ano inteiro.

Quando acordava, percebia onde estava, onde ainda estava. E seu mundo escorria feito água em direção ao ralo. Jogava-se na cama – na verdade, nem chegava a sair dela – e passava o dia inteiro lá. Ia assim, desaprendendo a viver, se cansando de respirar.

Seu psicólogo dizia, com aquela falta de emoção, que eles trabalhariam naquilo. O sentimento iria passar, porque essas coisas passam, não passam? Dizia que a tristeza, um dia, iria embora, como a felicidade havia ido, completava por pensamentos.

Nesses momentos, se lembrava da sua vida no interior. Como as coisas eram mais fáceis, ainda que fossem mais difíceis. Naquele pequeno mundo, onde ninguém era capaz de ter grandes ambições além de sair daquela pequena cidade que ninguém nunca ouviu falar, ela nasceu, cresceu e viveu. 

Só olhava ao redor, vendo as pessoas. Feias, sem esperanças, de sonhos partidos, de corações suturados. Pessoas que haviam cansado de viver, de sobreviver. Que haviam cansado de escolher roupas, penteados, ideais, conversas. Que se prendiam apenas às fofocas e ao tempo. Que eram feias não só por fora, mas por dentro, naquele abismo escuro, labirinto enevoado.

Via isso. O que a pessoa era por dentro. Odiava sair, porque só conseguia ver o interior das pessoas manchado pelo exterior. Sentia vergonha por elas, se perguntava por que ainda existiam, se nunca sentiram vergonha de ir à rua.

Às vezes, se entupia de antidepressivos. Porque cansava de viver. Não queria se matar, nunca quis. Sempre pensava nos livros que ainda tinha que ler, na vida que ainda tinha que aproveitar, nas pessoas que valiam a pena conhecer, nos lugares, nas sensações, nos sentimentos; nunca quis se matar.

A verdade é que já quisera. Mas um dia, uma circunstância a mudou. Assistira a uma reportagem sobre um rapaz que morrera depois de jogar videogame por três dias direto.

Morrer.

Assim, tão simples, sem saber que vai morrer, sem perceber, sem entrar em pânico, sem choro, sem ninguém saber, sem últimos momentos dos quais possa se lembrar. Mas é claro que não vai se lembrar. Sem poder fazer disso um dia especial. Pedir desculpas, dizer que ama, essas coisas. Passar um último tempo com alguém.

Percebera isso. E dormir nunca foi tão assustador quanto aquele dia. “Eu vou acordar?” era a pergunta. O nervosismo era tanto que não conseguia fechar os olhos e relaxar, mas o outro dia veio. O sol invadia suas pálpebras, os pássaros do vizinho lhe davam dor de cabeça – assim, já de manhã – e o som do rádio ligado irritava seus tímpanos.

Não morrera.

Suspirou fundo. Às vezes esquecia-se de como era a sensação do ar chegando fundo aos pulmões, bem lá aos alvéolos. Assim como a fumaça do cigarro que sempre fumava. Destruindo seus órgãos respiratórios.

Era um paradoxo. Não queria morrer, mas se autodestruía. Tomava seu coquetel de antidepressivos planejando dormir por dois, três dias. Acordava, fazia uma coisa ou outra e voltava a tomar as pílulas.

Só queria se livrar daquela realidade esmagadora, sabe? Desejava a facilidade que encontrava nos braços de Morpheus.

Muitos diziam que a vida era especial, maravilhosa, única, mas em sua opinião, vida era dolorosa, injusta, triste por natureza, inquietante.  Por isso que com freqüência desistia dela. Desistia da sua aparência, dos seus demônios, dilemas. Desistia da frustração que era a sua vida.

Desistia da sua incapacidade de conversar com as pessoas, resolver seus problemas, conviver com elas. Desistia do lugar onde vivia, da vida que mantinha, das pessoas que conhecia. Tinha tanto pelo que desistir, mas não desistia.

Havia coisas como subir no telhado da casa da sua mãe, lá no interior, deitar e só observar as estrelas. “Aquele é o Cruzeiro do Sul” – seu pai sempre apontava, mas nunca conseguia identificar.

Havia também aquele senhor que vendia picolés de todos os sabores e gostava de conversar sobre tudo e todos. Durante toda a sua morada no interior o ouviu falar sobre o fim da Bossa Nova, a história do MPB e, claro, os melhores sabores de sorvete.

Também havia aqueles dias de inverno, onde era impossível enxergar as casas – velhas, caídas, cheias de mofo, de tristeza palpável – por trás da neblina, aquelas pessoas que encontrava no metrô, que pareciam ter a alma limpa, ter toda uma história cheia de encantos por trás do rosto sonolento, tombando para o lado.

Costumava escrever sobre elas. Descrevia um gesto, às vezes simples, habitual, às vezes construía toda uma vida por trás das palavras. Usava suas pessoas, as do metrô, as da biblioteca que freqüentava, o jovem com quem cruzava no corredor quando voltava de noite da faculdade, e a dona da estalagem.

Ela era muito velha, cabelos brancos, marcas da velhice em todo o corpo, meio corcunda. Sua voz era fina e suas mãos sempre tremiam. Sentia pena dela. Quando a olhava, só desejava não chegar àquele ponto. Sozinha no mundo, sem mais ninguém, só à espera da morte.

Nessas horas, quando se perguntava se já não era assim, “sozinha no mundo, sem mais ninguém” e não conseguia definir qual era a diferença entre si e a dona do cortiço, se esforçava para se lembrar das conversas com seu pai, “Definitivamente, o Oscar este ano foi mais que injusto”. O passatempo com sua mãe que lhe ensinara a tricotar no início da adolescência, “Tricotar é mais que calmante”, “Só faço isso porque gosto das roupas”, respondia.

Também tentava se lembrar de seu retorno à pequena cidade, quando revia seus pets – como os chamava. Ficava durante horas, quase o dia inteiro acariciando o pelo de seu Birmanês, assobiando para seus pássaros – tinha periquitos, pintinhos, calopsitas, papagaios e uma arara. Brincava com seu Labrador, fazendo-o buscar sua bolinha de morder várias e várias vezes. Implicava com seu coelho, levantando suas patas traseiras quando ele tentava pular.

Tinha muito pelo que desistir, mas tinha muito mais pelo que viver. E quando guardava os óculos na gaveta, encarava o teto e respirava fundo aquele cheiro acre se lembrava disso. Lembrava-se de que a vida não valia a pena ser vivida, mas vez ou outra – bem de vez em quando – ela era pintada com momentos tão bons quanto os picolés que mordia quando criança.


Giovanna – já disse que acho esse seu nome muito bonito? às vezes, a gente vai se perdendo, esquecendo de quem a gente é, deixando frestas para a tristeza se instalar. Às vezes, tentamos nos achar e acabamos nos perdendo mais ainda. Eu sei que até lá – caminho longo, chato, tortuoso, cheio de voltas – vai demorar um pouco, talvez muito, quem sabe? Mas em um dia, em uma vida, em um século, em um milênio você vai estar de volta à sua Inglaterra. Porque o que uma vez foi nosso, sempre será nosso e sempre estará conosco, nem que só uma pequena fração de seu todo.
Te desejo só felicidade esse ano, um bolo molhadinho de chocolate, muito dinheiro – pra dar e vender – e um parabéns cheio de abraços. Feliz aniversário.