“Eu tenho câncer,” ela disse.
Ele não ofereceu nada. Nenhum
sinal de simpatia, empatia, pesar. Seu terapeuta a encarou com um pedido mudo
para que continuasse.
Ela respirou fundo e fechou os
olhos por um momento. Era difícil conversar sobre isso, sobre seus pontos
fracos, sobre o que a assustava à noite e a impedia de sair. O que a fazia
entrar em um estado de inércia—dias, semanas, meses—e chorar na hora de dormir.
Na hora de viver.
O ambiente em si era confortável.
Nada muito profissional, além da estante cheia de livros sobre doenças mentais.
Na primeira vez em que estivera ali, ela vira um dos títulos que ela mais
gostava—A Menina que Roubava Livros—e dali em diante, passou a fazer de um
hábito seu, checar todos os títulos que não fossem relacionados à saúde.
“Minha família,” finalmente,
depois de um bom tempo, ela respondeu. “As pessoas.”
Ela esperou, mas já sabia que o
silêncio continuaria presente. Era sempre assim, o bastardo sádico. Ele a fazia
soltar uma informação que ela definitivamente não queria e com isso não a
deixava ir. Com um anzol enferrujado, porém afiado, ele a pescava. Ela se contorcia e tentava fugir, mas de nada
bastava.
Ela já esperava que ele não oferecesse
resposta até que ela terminasse. Nem meias palavras, nem consolações. Em parte,
gostava disso. Não queria nenhum conforto no momento.
“Vai me destruindo por dentro,
minhas vísceras, até que a única coisa que resta é a casca. É isso o que eu
sou. Uma carcaça.”
Dessa vez ele franziu as
sobrancelhas, mergulhado em pensamentos, e acenou. Remexendo-se devagar, no
silêncio daquela manhã, ele correu os olhos pelo cômodo.
“O que mais te corrói por
dentro?”
“Corrói? Hum...” ela comprimiu os
lábios pensativa.
O teto dele era bastante bonito,
meio vitoriano. Um candelabro no centro da sala. De súbito, pensou, “deve ser
uma grana isso aqui.” E era. Mas sua família podia arcar com as despesas. Sua
família, na verdade, podia pagar tudo, exceto coisas simples como bem-estar. Paz,
felicidade. Coisas simples. Ela sorriu amargamente.
“Injustiça.”
“Qual tipo?”
“Algumas pessoas merecem mais do
que elas têm... algumas merecem menos. Mas quem decide isso? Talvez seja só meu
ponto de vista, até porque eu não conheço todo o mundo pra dizer essas coisas—e
também não vou entrar na parte política, ou de gente que deveria estar na
cadeia—mas tem gente que sofre, e sofre, e nada de bom vem. Por quê? Por que
tem gente que é feliz enquanto há gente que é infeliz desde uma pequena idade?
Por que tem gente que é feliz enquanto há pessoas morrendo de fome?” Ela
respirou fundo, “não estou dizendo que essas pessoas deveriam ser infelizes por
haver gente infeliz. Não. Ninguém nunca entende o que eu quero dizer. O que eu
quero dizer é, por que existem coisas tão distintas no mundo? Gente tão feliz
enquanto há gente que nem uma refeição completa durante o dia tem.”
“Você se considera uma pessoa que
merece mais do que tem?”
O “sim!” em sua boca estava a
ponto de sair, mas ela se refreou. “Não,” disse, desviando o olhar. “Mas também
não mereço o que eu recebo. Eu venho tentando tanto, mas nada de bom sai
disso.”
“Por que você acha isso?”
Sua respiração soou chiada no
silêncio do cômodo. Ela quis gritar, levantar da poltrona confortável de couro
e jogar todos os livros dele no chão. Quis quebrar a bonita mesa de vidro fosco
e se cortar com os cacos. Quis gritar na cara dele que aquilo não a estava
ajudando, não estava levando-a a lugar nenhum. Mas tudo o que fez foi respirar
fundo mais uma vez, fechar os olhos e estalar os dedos. Já estava acostumada a
trancar suas emoções num lugar escuro, pútrido e escondido dentro dela mesma.
“Eu já sofri demais,” disse
calmamente, sentindo sua voz soar estranha até para seus próprios ouvidos.
“Nada, nem ninguém pode me ajudar. Eu sempre fui assim, desde pequena, mas
ultimamente isso só tem piorado. Os últimos anos têm sido um inferno, eu acordo
e o peso do mundo volta sobre meus ombros.”
“Muitas pessoas tiveram vidas
difíceis antes de finalmente se estabilizarem. Infelizmente, nem todos têm a
mesma oportunidade, mas discutir o porquê já não é algo que cabe a nós, é?”
A voz dele, pensou, era muito
bonita. Grave, porém de uma suavidade que parecia com veludo. Era a única coisa
que gostava nele. Ele conseguia tranquiliza-la com sua voz que era morna, mas a
fazia se sentir como se estivesse ao pé de uma cachoeira. Ouvir sua voz lhe
dava uma sensação parecida com aquela quando tomava chocolate quente no
inverno, e a bebida descia morna, se instalando em seu estômago, e ela
conseguia sentir seu percurso. Era assim que ela se sentia.
“Alguns trazem a religião a esse
aspecto social que você chama de injusto, outros culpam fatores históricos, mas
de qualquer jeito, são discussões além do nosso alcance.”
“Mas e a minha vida? Também está
além do meu alcance? Tudo é...” ela pausou, procurando pela palavra certa, “tudo
está... não temos controle sobre a nossa própria vida? Não importa o quanto eu
tente...?”
“Não foi isso o que eu disse—”
“Mas é isso o que acontece!” E
ela bateu com a mão no apoio da poltrona, sentindo-se como se estivesse
explodindo em frustração. “O sol não
nasce pra todos,” ela gritou; respiração ofegante. E logo a seguir sentiu
suas bochechas queimarem. Respirou fundo e desviou o olhar. “Desculpa.”
Ele continuou em silêncio, mas
ela sentia seu olhar pesar sobre ela, trazendo vergonha e culpa. “Não,” ela
disse a si mesmo mentalmente, “a culpa é dele, não sua.”
Ela revirou os olhos, farta
daquele momento que pareceu se estender além do limite e olhou para ele.
Outra coisa que ela gostava no
terapeuta eram seus olhos. Eles eram castanhos—um castanho peculiar, não era
escuro, nem claro, nem dourado, nem esverdeado, mas uma cor singular que ela
não conseguia entender—e doces. Nunca acusavam nada, nem demonstravam pena. O
olhar dele era o olhar de um amigo íntimo ao ouvir suas confissões. Os olhos
dele demonstravam confiança, “tudo bem chorar, você não precisa sempre se
manter forte.”
“Me desculpa,” ela pediu de novo,
um pouco envergonhada, porque ele não tinha culpa nenhuma. Era seu trabalho
tentar fazê-la se sentir melhor. Não era sua culpa ela ser um caso perdido, sem
solução.
Seus olhos desviaram-se para a
parede atrás dela, e ela soube imediatamente que ele estava checando as horas.
“O que te faz se sentir inteira?”
Ela deu de ombros, “não sei.”
Essas coisas nunca vinham fáceis
para ela. Tinha sempre que pensar, e pensar, e, ainda assim, nada vinha à sua
cabeça. Ela checou as horas em seu próprio relógio de pulso. Ele iria dizer,
“eu quero que você—” e passar algum “dever de casa” que ela só poria esforço em
fazê-lo enquanto seu pai estivesse dirigindo-a para o consultório.
“Eu quero que você pense no que
te faz não se sentir uma carcaça.”
“'Tá,” ela concordou, como
sempre, e forçou seu sorriso debochado a desaparecer.
Ele se levantou e se encaminhou
para a porta. Ela olhou para o relógio—bem em ponto—e o seguiu. Era sempre a
mesma coisa, ele apertava sua mão e ela, insegura do que fazer, fazia o mesmo.
Elas eram tão mornas quanto sua voz. Um hábito que ele tinha era de cobrir a
mão dela com a sua outra, criando um ninho confortável.
“Até a próxima consulta,” ele
sorriu.
Ela olhou para cima e forçou um
sorriso. Murmurou uma despedida desajeitada—porque ele era educado demais,
cordial demais e alto demais—e se desvencilhou dele.
A maçaneta da porta era fria de
encontro a sua mão aquecida. Tal qual sua vida.